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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say
. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him (KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org

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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say
. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him (KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say
. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him
(KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him
(KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him (KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him (KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


__________________________________________________________________________
Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him (KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
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STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org

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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him (KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. A morte do autor: imagem, música, texto em O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.
HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation. Oxford: Blackwell, 2005.
STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


Recebido em:
Aceito em:
Publicado em:


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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
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LABIRINTOS AUTORAIS: A ADAPTAÇÃO FÍLMICA DE IN THE TALL GRASS, DE STEPHEN KING E JOE HILL

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo realizar um estudo sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação do conto ?In the tall grass? (2012), de Stephen King e Joe Hill, para a linguagem cinematográfica do streaming. Para tanto, nos propomos a realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos, rupturas e continuidades formais e simbólicas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelo adaptador Vincenzo Natali, bem como suas (possíveis) motivações. Para tanto, nos embasamos nas teorias acerca do processo de adaptação propostas por Stam (2000), Bolter e Grusin (2000), Ondaatje (2002) e Hutcheon (2013). A partir da análise, concluimos que, com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme, a saber: ampliação na participação dos personagens secundários e terciários; adição de um herói arquetípico como protagonista; ampliação dos cenários do conto, inserção de elementos sci fi e do horror slasher. Ademais, muitos elementos da sintaxe cinematográfica são utilizados para transportar para a tela a tensão e a opressão do locus horribilis retratado no conto, tais como: tomadas aéreas do matagal; planos-detalhe em elementos da natureza; quadros abertos para estabelecer a localização dos personagens.

PALAVRAS-CHAVE: Adaptação; Stephen King; Cinema; Streaming.


1. INTRODUÇÃO

Os últimos anos da década de 2010 têm visto um grande número de adaptações da obra de Stephen King para cinema, TV e streaming. A quantidade cresceu exponenciamente a partir de 2017, contando com o sucesso comercial e de crítica de títulos como It (2017), Gerald?s Game (2017), 1922 (2017), Pet Sematary (2019) e Doctor Sleep (2019). Ainda que esse revival tenha incorrido também em obras de qualidade questionada, o saldo final é incontestavelmente positivo e sedimenta o status de Stephen King como galinha dos ovos de ouro dos estúdios hollywoodianos. Adaptar sua biblioteca é a receita para a notoriedade: seja de um romance cultuado ou de um conto obscuro numa coletânea do início da carreira, qualquer adaptação audiovisual causa certo furor quando destaca em letras garrafais, preferencialmente no topo do cartaz: ?baseado na obra de Stephen King?.
Adaptações, segundo Linda Hutcheon (2013), são parte indispensável da cultura ocidental moderna, uma vez que esta é intrinsecamente transmidiática, transcultural, interativa e massificada. Além disso, se mostram como uma alternativa menos arriscada, do ponto de vista mercadológico, para se alcançar sucesso e lucro. Produtoras de cinema e serviços de streaming travam disputas milionárias pelo direito de adaptar para as telas obras literárias e quadrinísticas que já fazem parte do imaginário popular ou que, nos últimos tempos, têm feito enorme sucesso em suas mídias originais. Essas viscerais batalhas pelos direitos autorais não são, de forma alguma, injustificadas. Groensteen (1998) aponta para um dado significativo: 85% de todos os vencedores da categoria de melhor filme no Oscar são adaptações, ao passo que 95% de todas as minisséries e 70% dos filmes feitos para a TV que ganham Emmy Awards também o são.
[1: Dados referentes à década de 90. Ainda que hoje em dia as adaptações continuem fazendo enorme sucesso de público e crítica, são necessários estudos mais recentes para quantificar esse êxito em números mais atuais. ]
Ao aliar a surpresa da novidade com o reconhecimento de uma obra já apreciada, de quebra ?dando vida? a personagens e locais antes apenas imaginados, adaptações audiovisuais se mostram como uma poderosa ferramenta cultural para levar o grande público às salas de cinema e aos serviços de streaming; basta notar o sucesso sem precedentes alcançado pelas adaptações cinematográficas dos comics americanos das editoras Marvel e DC.
No caso dos streamings, em específico, adaptações de obras de sucesso são de grande valia por três motivos, todos envolvendo o sistema de catálogo no qual os títulos são organizados pelos aplicativos: (i) adaptações se destacam em meio à multidão. Zapeando por centenas de filmes e séries, muitos totalmente desconhecidos, o espectador naturalmente se sentirá atraído por um título conhecido; (ii) adaptações são excelentes para o crescimento do catálogo. Para garantir o máximo screen time de cada assinante, é preciso um catálogo vasto, e a grande quantidade de adaptações produzidas anualmente por diferentes estúdios é uma ótima forma de preenchê-lo; (iii) adaptações são uma excelente fonte de conteúdo original. Visando se manter sempre em relevância, os serviços de streaming têm produzido suas próprias obras originais, evitando, assim, ter de retirar do catálogo títulos exógenos por razões contratuais. Como mencionado anteriormente, adaptações são produções de alto teto de lucro e baixo risco, uma vez que recorrem ao afeto do público, ao contexto e à relevância social e mercadológica preestabelecida de outras obras, o que as torna propícias para a empleitada das criações originais.
[2: Em inglês: tempo de tela. Métrica relacionada ao tempo que o espectador passa acessando determinado aplicativo de streaming.]
Isto posto, não é de se espantar que os serviços de streaming tenham se voltado para a obra de Stephen King. Na segunda metade da década de 2010, o número de séries e filmes adaptados das páginas de King diretamente para a pequena tela decolou. Sugiram séries como 11.22.63 (2016) e Castle Rock (2018 ? 2019), do Hulu; Mr. Mercedes (2017), do Peacock, Creepshow (2019), do Shudder, The Outsider (2020), da HBO, The Stand (2020), do CBS All Acess. Quanto aos filmes, que requerem maior orçamento, a grande fatia do bolo ficou para o principal serviço de streaming da década: a Netflix emplacou três películas adaptadas de King em rápida sucessão: Gerald?s Game (2017), 1922 (2017) e In the tall grass (2019).
Da tríade supracitada, a incursão mais recente ? In the tall grass ? pode ser considerada a de menor sucesso. Muito longe da aclamação de público e crítica de seus dois predecessores, o filme encontrou recepção desfavorável em ambos as frontes. Esquecível, repetitivo, arrastado, tedioso e apático são alguns adjetivos utilizados pelos críticos para defini-lo. Alguns chegaram a colocá-lo entre as piores adaptações de Stephen King já feitas. O que a maioria das reviews negativas têm em comum é o fato de aludirem à obra original para justificar a falta de urgência e o desenvolvimento arrastado da película. Isso se deve ao fato de que In the tall grass foi adaptado de um conto homônimo, coescrito por King e seu filho Joe Hill e publicado na revista Esquire em 2012; ou seja, o filme, de 100 minutos de duração, adapta uma trama que originalmente não passava de 60 páginas.
[3: Para não nos desviarmos do objeto do artigo, propomos apenas uma breve comparação entre as notas dos três filmes no agregador de críticas Rotten Tomatoes: Gerald?s Game possui 91% de críticas positivas em sites especializados. O mesmo para 1922, que possui 90%. In the tall grass, por outro lado, possui apenas 36%, sendo certificado como rotten [podre]. STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.]
Em se tratando de adaptações de obras literárias, parece haver uma silenciosa regra de proporção que dita, convencionalmente, como se deve adaptar cada gênero literário para o modo de engajamento audiovisual. Romances geralmente são adaptados como longas-metragens ? proporcionalidade que se estende para trilogias, quadrilogias e sagas: um livro corresponde a um filme ? ou séries televisivas. Novelas e contos, por sua vez, costumam ser adaptados como minisséries, curtas-metragens ou episódios especificos de certos seriados antológicos. Ao subverter essa norma, In the tall grass foi amplamente repudiado pela crítica, cujo principal problema com o filme pode ser resumido nas palavras de dois jornalistas: Noel Murray, do Los Angeles Times, comenta: ?In the tall grass é longo demais e de repete demais para ser tão envolvente quanto seu material original? (MURRAY, 2019, s/p), ao que Trace Thurman completa: ?é sempre uma aposta quando se estica tanto uma narrativa curta para caber em um longa-metragem. Essa aposta não se paga em In the tall grass de Vincenzo Natali? (HORROR QUEERS, 2019, s/p).
[4: Tradução nossa. No original: "In the Tall Grass runs too long and repeats itself too much to be as gripping as its source material.?][5: Tradução nossa. No original: ?It's always a gamble when stretching a short story's narrative to feature-length. That gamble doesn't pay off in Vincenzo Natali's In the Tall Grass.?]
Apesar do enorme sucesso de público e crítica que possuem as adaptações nas mais variadas mídias, ainda é comum que nos deparemos com uma concepção perpetuada pelo senso comum de que toda obra adaptada é inferior à original ou, em algum modo e grau, é devedora a ela. Por vezes esse juízo é postulado de maneira quase axiomática, antes mesmo de se avaliar as qualidades e os defeitos de dada adaptação, como se toda adaptação, por sê-lo, fosse automaticamente inferior à obra original. Esse pensamento, segundo Hutcheon (2013), contagia até mesmo a crítica especializada, que enxerga as adaptações populares contemporâneas como secundárias, derivativas, tardias, convencionais ou culturalmente inferiores. Nesta seara, Stam (2000) acredita que a literatura, principalmente, sempre possuirá uma superioridade sobre qualquer adaptação que a ela recorra como fonte, por ser uma forma de arte mais antiga e, por isso, hierarquicamente superior.
Diante do panorama dado, a adaptação do conto de King e Hill parece pôr em xeque não só sua relação com o texto-fonte como sua própria qualidade cinematográfica ao assumir o risco de traduzir intersemioticamente uma narrativa curta para um longa-metragem. Em face das potencialidades do filme e do conto, cada um em seu próprio território e com suas próprias particularidades midiáticas, julgamos incipientes estudos comparativos entre as duas obras que se pautem apenas nas noções já obsoletas de fidelidade e subserviência da adaptação em relação ao seu hipertexto (STAM, 2000; MACIEL, 2003; HUTCHEON, 2013). Com isso em mente, o que propomos nesse artigo é um estudo, pelo viés das teorias da adaptação, sobre as estratégias adaptativas empregadas no processo de remidiação (BOLTER; GRUSIN, 2000) do conto ?In the tall grass? para a linguagem cinematográfica. Para tanto, pretendemos realizar uma leitura imanente pautada nos aspectos formais e temáticos das duas obras: alterações e permanências de elementos narrativos e imagéticos; rupturas e continuidades formais, simbólicas e temáticas, além das escolhas e recursos da linguagem cinematográfica empregados pelos adaptadores, bem como suas (possíveis) motivações criativas e mercadológicas. Com esse aparato analítico, buscamos compreender como se deu a tarefa de adaptar o conto para um filme longa-metragem.

2. EM DEFESA DA ADAPTAÇÃO

Para fins de clareza, faz-se necessário que afirmemos, logo de início, o conceito de adaptação sobre o qual alicerçamos nosso estudo. Em consonância com as teorizações feitas por Hutcheon (2013), vislumbramos o termo adaptação em sua ambivalência de significados: nomeia tanto o processo de adaptar quanto o produto final deste processo. Enquanto produto, a adaptação pode ser definida como uma revisão abertamente declarada, extensiva e reconhecível de determinado texto. O objeto, uma vez transportado para outra mídia ou reconfigurado para a mesma mídia em um diferente contexto ou gênero, sempre será fruto de mudanças, sejam elas de linguagem, de forma ou de tema. Esse caráter fundamental do texto adaptado enquanto produto já o diferencia sobremaneira do texto que é apenas traduzido.
Como aponta Hutcheon (2013, p. 40), ?na maioria dos conceitos de tradução, o texto original possui autoridade e primazia axiomáticas?, de forma que a retórica feita pela crítica de uma tradução recorre sempre ao discurso da fidelidade e da equivalência. Não há que se falar, portanto, em fidelidade ou primazia do texto fonte quando o objeto de análise é um texto adaptado, uma vez que a adaptação é sinônimo de transformação, reformatação.
Enquanto processo, a adaptação é uma tarefa dupla de interpretação e criação. Hutcheon (2013) vai além ao afirmar que os adaptadores são, primeiramente, intérpretes antes de serem criadores. Este processo de caráter ambivalente envolve uma vastidão de estratégias e escolhas de recodificação, remidiação, subtração, adição e indigenização a depender da intencionalidade dos adaptadores. É um processo que envolve, naturalmente, perdas e ganhos (STAM, 2000). Os motivos para a realização de uma adaptação são inúmeros, variando desde questões econômicas às questões estéticas, mas é importante salientar que nenhuma ideia de adaptação surge a esmo. Dirá Hutcheon que

há uma ampla gama de razões pelas quais adaptadores podem escolher uma história em particular para então transcodificá-la para uma mídia ou gênero. [...] O propósito pode muito bem ser o de suplantar econômica e artisticamente as obras anteriores. A vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado é tão comum quanto a de prestar homenagem. (HUTCHEON, 2013, p. 44)

Seja qual for o elemento do texto fonte que esteja sendo transportado para o texto adaptado, passará impreterivelmente pelo filtro criativo dos adaptadores.
Do ponto de vista da recepção, no entanto, é difícil se falar de adaptação sem trazer à tona comparações com o texto original. Conforme aponta Stam (2000), o próprio ato de consumir um texto adaptado é um exercício dialógico no qual comparamos a obra que estamos experienciando àquela que já conhecemos, a menos que o ato parta de um sujeito que desconhece totalmente o texto-fonte. A título de exemplo, o filme In the tall grass (2019), objeto de análise deste trabalho, não tem por objetivo transpor literalmente ou ?traduzir? para outra mídia aquilo que está escrito no conto ?In the tall grass? (2012). Como uma adaptação transmidiática, trata-se de um processo que envolve, inerentemente, mudanças; ainda que o filme deva possuir uma relação estreita com a obra original, ele se configura como uma obra única, de existência independente, inserida em outro contexto e em outra mídia. Isso possibilita que um sujeito que desconhece a existência do conto venha a entrar em contato com o filme, compreendê-lo totalmente e apreciá-lo por seus próprios méritos e características. Por outro lado, para um espectador que é familiar com o texto-fonte, é natural fazer comparações.
A proposição de Stam (2000) se alinha às teorizações pós-estruturalistas sobre intertextualidade (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2005) segundo as quais os textos estão inseridos em extensas cadeias de citações visíveis e invisíveis, conscientes e inconscientes. Não somente a literatura como todas as produções culturais seriam palimpsestos de infinitas rasuras entre tudo o que já foi lido e escrito. Diante dessa noção de teias intertextuais, as adaptações se sobressaem graças a uma importante ressalva proposta por Hutcheon (2013): elas são necessariamente reconhecíveis como adaptações de textos específicos, que estão acima dos outros possíveis textos com os quais uma adaptação pode dialogar. O reconhecimento em relação a determinados textos específicos é parte indissociável da identidade formal das adaptações, portanto, esses textos possuem lugar privilegiado em relação ao "ruído de fundo" da intertextualidade (HINDS, 1998).
É levando em consideração esses aspectos definidores das adaptações que reforçamos a necessidade já mencionada na introdução de abordar adaptações como adaptações (HUTCHEON, 2013). Esta proposição, que à primeira vista pode parecer redundante e banal, é de suma importância no sentido de afastar dos estudos da adaptação a retórica da fidelidade e a visão obsoleta de uma posição hierárquica superior do texto fonte. Como bem aponta Hutcheon,

a dupla natureza da adaptação não significa, entretanto, que proximidade e fidelidade ao texto adaptado devam ser o critério de julgamento ou o foco de análise. Por muito tempo, a "crítica" da fidelidade, como ficou conhecida, foi a ortodoxia analítica dos estudos de adaptação, especialmente quando estes lidavam com obras canônicas [...]. O discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. (HUTCHEON, 2013, p. 28)


Tratar adaptações como adaptações significa enxergá-las menos como tributárias ou devedoras aos textos fonte do que como obras autônomas, dotadas de autoria e criatividade, mas cuja realização se dá em diálogo com outras anteriores. Pensá-las como obras inerentemente palimpsésticas, cuja presença do texto anterior é sentida a todo momento, mas não paira sobre elas como um fantasma ou como uma figura paterna edipiana. Esta virada de paradigma pressupõe uma questão fundamental apontada por Hutcheon (2013, p. 29): ?se a ideia de fidelidade não deveria hoje guiar nenhuma teoria da adaptação, o que, então, deveria?? A resposta para essa pergunta está pulverizada por tudo o que foi exposto neste artigo até agora: os novos estudos da adaptação, este incluso, devem centrar seus escopos no processo de adaptação per se, isto é, englobando os movimentos intelectuais de (re)interpretação e (re)criação; nas estratégias de reformatação, transcodificação, remidiação e todas as outras que fazem parte do complexo ato de adaptar. O foco deve ser menos o débito que o texto adaptado possui com o ?original? ? ideia já destruída pela noção de intertextualidade dos pós-estruturalistas franceses ? e mais a forma como as adaptações são realizadas e as escolhas e posicionamentos que elas implicam.
Um dos grandes avanços das proposições de Hutcheon (2013) em prol dessa nova forma de se teorizar sobre adaptação é a distinção entre os particulares modos de engajamento específicos de cada mídia. Segundo a autora, o público experimenta de formas diferentes obras realizadas em diferentes linguagens. Essas formas podem variar de mídia para mídia, de gênero para gênero, mas são passíveis de ser categorizadas em três principais "modos de engajamento": contar (literatura, quadrinhos), mostrar (audiovisual) e interagir (jogos). Sendo assim,

no modo contar - na literatura narrativa, por exemplo - nosso engajamento começa pelo campo da imaginação, que é simultaneamente controlado pelas palavras selecionadas, que conduzem o texto [...]. Mas com a travessia para o modo mostrar, como em filmes e adaptações teatrais, somos capturados por uma história inexorável, que sempre segue adiante. Além disso, passamos da imaginação para o domínio da percepção direta, com sua mistura tanto de detalhe quanto de foco mais amplo. (HUTCHEON, 2013, p. 48)

Há ainda o modo interagir, que nos permite atuar fisicamente sobre a obra e possibilita uma forma mais imediata e cinética de interação, mas, como trataremos nesse artigo das relações entre um romance e um filme, interessam-nos especificamente os modos contar e mostrar. As diferenças entre esses modos de engajamento são aspecto fundamental a se levar em consideração nos estudos da adaptação, sobretudo quando o foco da análise recai sobre processos de remidiação ? ou seja, adaptação entre mídias distintas. Cada modo de engajamento possui seus próprios métodos de condicionar e nortear a experiência do público. Num processo adaptativo de remidiação é preciso, pois, que as estratégias de interação sejam também reconfiguradas para melhor servir à mídia da obra adaptada, ainda que mantendo certa coesão com a obra anterior para mantê-la reconhecível ? a depender do que se está adaptando: trama, personagens, sistemas simbólicos, leitmotifs. Guardadas as devidas proporções, essas peculiaridades entre os modos de engajamento já são há muito conhecidas pelos profissionais e produtores audiovisuais e estão latentes na máxima do cinema e da TV: ?Show, don?t tell?. Mostre, não conte. As estratégias escolhidas pelo adaptador Vincenzo Natali para a transposição do conto ?In the tall grass? para o modo de engajamento mostrar, bem como suas motivações, são o objeto fundamental da análise realizada neste artigo.
Cabe aqui um parêntese para explicar o porquê de atribuirmos a Vincenzo Natali a autoria da adaptação, incumbindo-lhe a alcunha de adaptador. Conforme assinala Hutcheon (2013), as mídias mais atuais mostram que a adaptação é, quase sempre, um processo coletivo. Sobretudo quando se fala da mudança de um romance ou peça de autoria única para os modos performativo ou interativo, é natural a passagem de um modelo individual de criação para uma atividade coletiva. Como é de conhecimento comum, filmes e séries de TV são produções que geralmente envolvem orçamentos milionários, investimentos colossais de estúdios e produtoras e equipes de realização que podem ultrapassar a casa das centenas de trabalhadores. Trata-se de um processo tanto criativo e estético quanto econômico no qual vários níveis hierárquicos de tomada de decisão estão envolvidos, desde os altos executivos aos diretores de segunda e terceira unidade. No caso de uma obra fílmica ou televisiva adaptada, que conta com toda essa intrincada urdidura de produção, quem seria o adaptador? Hutcheon (2013, p. 119) questiona: ?Será que o principal adaptador é o tantas vezes ignorado roteirista, que ?cria (ou adapta criativamente) o enredo de um filme, os personagens, os diálogos e o tema???
Já Ondaatje (2002) salienta que é preciso ter em mente o importante trabalho do editor ou montador do filme, cujo trabalho é imenso e muito importante para a construção da ?forma final? do filme, mas não raramente ignorado ou diminuído. Não seriam, porém, os atores os responsáveis pela adaptação? Já que, como pode-se pensar, são eles que adaptam os personagens das páginas para a tela através da sua atuação. Stam (2005) descarta esta hipótese ao apontar que o que os atores de fato adaptam é o roteiro já escrito e finalizado pelo roteirista, este sim adaptando diretamente o texto fonte. No bojo desse debate, Ondaatje dirá que

é difícil para qualquer pessoa que já esteve num set de filmagem acreditar que o filme é feito por apenas um homem ou uma mulher. Em alguns momentos, o set assemelha-se a uma colmeia ou a um dia comum de trabalho na corte de Louis XIV - todos os grupos são vistos em ação, e parece que não há uma só pessoa desocupada. Mas, no que diz respeito ao público, há sempre um Rei-Sol que leva o crédito por tudo - história, estilo, design, tensão dramática, gosto e até mesmo pela atmosfera ligada ao produto final -, enquanto, obviamente, há outras profissões não menos importantes também em jogo. (ONDAATJE, 2002, p. 20)

O ?Rei-sol? ao qual ele se refere é o diretor de cinema. Hutcheon (2013, p. 124) corrobora com essa suposição ao afirmar que ?se observarmos os press releases e a reação dos críticos, veremos que o diretor, no fim, é considerado o responsável pela visão global e, portanto, pela adaptação?. Para o senso comum e para o público em geral, despreocupado com os pormenores das realizações cinematográficas, é o diretor o responsável por aquele produto; afinal, é o nome dele que estampa os cartazes e as capas de DVDs ? por vezes em pé de igualdade ou até mesmo com mais destaque que os nomes dos atores que estrelam a produção.
Diante do dilema brevemente exposto nos últimos parágrafos, nossa decisão de tomar como adaptadores o roteirista e o diretor é respaldada pela teorização de Hutcheon (2013) acerca da distância mantida entre os vários adaptadores de uma obra cinematográfica para com o texto fonte. Em poucas palavras, alguns adaptadores são responsáveis por interpretar e replicar criativamente o texto-fonte, enquanto os demais estão subordinados ao roteiro cinematográfico escrito com base nele. Essa cadeia de produção levaria a uma maior distância entre o ator e o texto fonte em comparação ao roteirista. Dirá a autora que ?por essa razão, tal como num musical em que compositor e escritor partilham a autoria, num filme, o diretor e o roteirista partilham a tarefa principal da adaptação? (HUTCHEON, 2013, p. 124); e prossegue: ?os demais artistas envolvidos podem retirar inspiração do texto adaptado, mas sua responsabilidade é mais para com o roteiro? (HUTCHEON, 2013, p. 125). Uma vez que Vincenzo Natali tanto dirige quanto é responsável pelo roteiro de In the tall grass, a ele atribuimos a autoria da adaptação.

2. NOS LABIRINTOS AUTORAIS DO MATAGAL

?In the tall grass?, o conto, foi publicado primeiramente na revista Esquire, dividido em duas partes, nos meses de julho e agosto de 2012. Mesmo não estando no rol das mais aclamadas e conhecidas obras de Stephen King, o conto ganhou certa notoriedade pela particularidade de sua autoria: foi escrito por King em parceria com seu filho mais velho, Joe Hill, conhecido por seu trabalho com histórias em quadrinhos. A premissa, simples, acompanha um casal de irmãos muito unidos, Cal e Becky, que durante uma viagem de carro cruzando os Estados Unidos se veem surpreendidos por gritos de criança vindo de um matagal na beira da rodovia. O mato alto, superior a um metro e oitenta, os impossibilita de ver o garoto, que a todo tempo suplica por ajuda. Ao observarem que os arredores desertos não possibilitariam nenhum outro meio de resgate para o pobre coitado, irmão e irmã se veem impelidos a adentrar no matagal para resgatá-lo. A situação começa a ganhar contornos inquietantes quando uma suposta mãe do garoto, também presa no matagal, começa a gritar desesperadamente para que eles não entrem ali, mas seus avisos não surtem efeito. Uma vez cercados pela vastidão labiríntica e sufocante do mato, Cal e Becky logo se deparam com insólitos acontecimentos cuja origem remonta a forças sobrenaturais.
O filme homônimo de 2019, produção original Netflix batizada no Brasil como Campo do medo, segue a mesma premissa, com a notável diferença de que os acontecimentos do conto acabam nos primeiros vinte minutos de exibição. A partir dessa marca, o adaptador Vincenzo Natali, que assina direção e roteiro, lança mão de uma miríade de estratégias adaptativas e principalmente adições de acontecimentos e personagens, expansão de cenários, diálogos e conflitos, além de reestruturar quase totalmente os elementos sobrenaturais que perpassam a trama, de forma a constituir um produto que, à medida que avança, se distancia cada vez mais do texto-fonte na tentativa de ampliá-lo. Todavia, vale ressaltar que, embasados nas teorias da adaptação, não percebemos a fratura entre conto e filme como um erro, um caso de infidelidade ou de mácula da obra ?original?. Encaramos ambas as obras como duas faces de uma moeda: autônomas, ainda que intrinsecamente ligadas, de forma que sua relação de simbiose não deve ser o único meio de analisá-las criticamente. A adaptação, como qualquer produção cultural, deve triunfar ou naufragar por suas próprias qualidades e defeitos, não apenas por seu grau de (in)fidelidade para com o texto-fonte.  
As formas distintas como as duas obras se iniciam já deixam claros quais serão os elementos focais de cada uma delas. O conto começa com um extenso mergulho nas relações que os irmãos nutrem entre si. Cal e Becky são muito unidos desde crianças, tão unidos a ponto de receberem a alcunha de irish twins (gêmeos irlandeses), em referência à estereotípica ? até pejorativa ? crença de que irlandeses têm muitos filhos. É com foco nos protagonistas que a história se inicia, qualquer visão de um matagal ainda está longe de acontecer:

He wanted quiet for a while instead of the radio, so you could say what happened was his fault. She wanted fresh air instead of the AC for a while, so you could say it was hers. But since they never would have heard the kid without both of those things, you?d really have to say it was a combination, which made it perfect Cal-and-Becky, because they had run in tandem all their lives. Cal and Becky DeMuth, born nineteen months apart. Their parents called them the Irish Twins.
?Becky picks up the phone and Cal says hello,? Mr. DeMuth liked to say. (KING & HILL, 2012, s/p)
[6: Tradução nossa: ?Ele queria silêncio por um tempo, em vez do rádio, então você poderia dizer que o que aconteceu foi culpa dele. Ela queria ar fresco em vez do ar-condicionado por um tempo, então você poderia dizer que era dela. Mas, uma vez que eles nunca teriam ouvido o garoto sem essas duas coisas, você realmente teria que dizer que era uma combinação, o que tornava uma perfeita situação Cal-e-Becky, porque eles haviam andado juntos por toda a vida. Cal e Becky DeMuth, nascidos com dezenove meses de diferença. Seus pais os chamavam de gêmeos irlandeses. ?Becky atende o telefone e Cal diz olá?, gostava de dizer o Sr. DeMuth.?]

A ênfase dada à união dos irmãos não é despropositada. Durante todo o conto, a preocupação de um com o outro, a tensão da separação e dos desencontos no matagal, a urgência e achar um caminho para o reencontro, tudo é potencializado pela já estabelecida inseparabilidade dos gêmeros irlandeses. O desenvolvimento dos personagens e de sua relação interpessoal é foco absoluto da história, ainda que isso seja, em certa medida, incomum em se tratando da literatura de horror. Nos gêneros que circundam o ato de assustar, arrepiar e aterrorizar, é comum que o foco esteja no elemento assustador: a ação, o cenário, o monstro, a ameaça. É isso que acontece, por exemplo, na adaptação fílmica, o que já fica patente nos primeiros frames ? uma longa tomada aérea do matagal a preencher toda a tela, conforme a figura 1:

Figura 1 ? uma enigmática tomada aérea do matagal abre o filme

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O minuto inicial do filme é inteiramente dedicado ao plano aéreo que se aproxima cada vez mais do matagal. O agudo sopro do vento e o balançar das ervas são acompanhados por uma trilha de instrumentos de corda desafinados e em desalinho que contribuem para a insolitude do que é mostrado em tela. Tudo isso acompanhado do logo em letras capitais de cor vermelho sangue ? IN THE TALL GRASS ? contribui para o estabelecimento da ameaça, do locus horribilis que será palco dos próximos acontecimentos. A ênfase na ameaça, cujo tom é sinalizado já na abertura, será a tônica do filme, que propositadamente deixa os personagens Cal e Becky relegados à condição de vítimas do terrível matagal e destaca a ameaça. O protagonismo dos irmãos será dividido entre eles e outro personagem que só será apresentado após os primeiros vinte minutos de película ? que encerram o conteúdo do conto: Travis McKean.
[7: Em latim ?local horrendo?. Paisagem sombria, isolada, lúgubre, inquietante e decadente que é cenário de acontecimentos insólitos, sobrenaturais. ]
No conto, o narrador onisciente reserva o trecho inicial da história para apresentar os gêmeos irlandeses ao leitor. Com apreço aos detalhes, são explicadas a sua forte relação fraternal, suas personalidades e as circunstâncias que os levam àquela viagem de carro cruzando o meio-oeste americano. Aos dezenove, Becky espera um filho não planejado, fruto de um relacionamento malsucedido. Diante da desasprovação dos pais, ela e o irmão largam a faculdade para morar com os tios por um tempo, ao menos até o nascimento da criança.

Of course they didn?t do everything together, because Cal sure as hell wasn?t responsible for the bun in his sister?s oven. And it had been solely Becky?s idea to ask Uncle Jim and Aunt Anne if she could live with them for a while?just until the baby came. To the senior DeMuths, who were stunned and bemused by this turn of events, it seemed as reasonable a course as any. And when Cal suggested he also take the spring semester off so they could make the cross-country drive together, their folks didn?t put up much of a fuss. They even agreed that Cal could stay with Becky in San Diego until the baby was born. Calvin might be able to find a little job and chip in on expenses. (KING & HILL, 2012, s/p)
[8: Tradução nossa: ?Claro que eles não faziam tudo juntos, porque Cal com certeza não era o responsável pelo pão no forno de sua irmã. E tinha sido ideia exclusiva de Becky perguntar ao tio Jim e à tia Anne se ela poderia morar com eles por um tempo - apenas até o bebê nascer. Para os DeMuths mais velhos, que ficaram perplexos e perplexos com essa reviravolta nos acontecimentos, parecia um curso tão razoável quanto qualquer outro. E quando Cal sugeriu que também tirasse o semestre da primavera para que pudessem cruzar o país juntos, seus pais não se preocuparam muito. Eles até concordaram que Cal poderia ficar com Becky em San Diego até o bebê nascer. Calvin poderia conseguir encontrar um pequeno emprego e contribuir com as despesas?.]

Os dois cruzam o país, saindo de New Hampshire com rumo a San Diego. No caminho, visitam atrações como a maior bola de barbante do mundo. Todo esse início do conto, que vai vagarosamente preparando o terreno para a construção do horror, está ausente na adaptação fílmica. No modo de engajamento ?mostrar?, é necessária uma concisão de ideias e acontecimentos para se construir um dinamismo em tela, uma sucessão de eventos quem mantenham o espectador sempre engajado. É possivelmente com esse pensamento que o adaptador Vincenzo Natali apaga todo o prólogo e inicia o filme in media res, com os irmãos já passando de carro pela rodovia 400, ladeada por extensos matagais. Detalhes acerca da trama serão trazidos à tona em pequenas doses através de diálogos e flashbacks ao longo do filme, incluindo muitas modificações.
Um exemplo da concisão da mídia fílmica pode ser visto já nos primeiros minutos, quando toda a discussão acerca da gravidez indesejada e das circunstâncias que levaram Becky até ali são condensadas em um plano-detalhe de sua barriga protuberante, uma pista visual para situar o espectador sobre a situação, conforme mostrado na figura 2. Em seguida, Becky se sente enjoada durante a viagem, o que resulta em Cal ? que ainda não foi estabelecido como seu irmão ? tendo que parar na beira da estrada para que ela possa vomitar. Outra informação importante é dada num pequeno diálogo entre os dois, no qual Becky resmunga sobre já ser tempo de superar os enjoos matinais, dando a entender que sua gestação já está avançada. Diferentemente do conto, Becky não está indo passar um tempo com os tios, e sim doar a criança para uma família de San Diego. Sua indecisão também é revelada paulatinamente através dos diálogos iniciais.

Figura 2 ? plano-detalhe da barriga de Becky

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

O vômito de Becky não apenas estabelece o status da personagem como também funciona como o gatilho que faz a trama se mover. Enquanto no livro é a combinação ?Cal-e-Becky? que os faz escutar os pedidos de ajuda vindos do matagal, a película não perde tempo e, a partir da parada na beira da estrada, já instaura a situação-problema: os irmãos ouvem os gritos de uma criança perdida no meio do mato e partem para tentar tirá-lo de lá. Não demora para que um perca o outro de vista, pois forças misteriosas parecem atuar sobre o matagal e movê-los para longe um do outro.
Quando os irmãos adentram o selvagem e o desconhecido, Vincenzo Natali encontra uma sagaz estratégia de filmagem para adaptar aquele que é um dos traços mais marcantes do conto: o foco narrativo alternante. No conto, uma vez que irmão e irmã se desencontram ao serem tragados pela força sobrenatural do matagal, o narrador onisciente alterna entre acompanhar os transtornos sofridos por um e por outro. Essa bipartição da ação proporciona a tensão e o terror do leitor a partir de dois principais motivos: i) a interrupção do clímax: sempre que um dos irmãos se depara com um novo elemento sobrenatural ou com uma ameaça, o narrador corta a ação e segue acompanhando o outro; ii) a solitude dos personagens os deixa ainda mais fragilizados: uma vez que já foi estabelecida a forte união de Cal e Becky, separá-los e fazer com que enfrentem o horror sozinhos enquanto procuram, malogradamente, um ao outro, torna a jornada dos personagens um suplício ainda maior.
Para adaptar essa atmosfera tensa e reformatar para o audiovisual a alternância do foco narrativo, Vicenzo Natali utiliza câmeras que passeiam por entre o matagal fluidamente, sempre acompanhando um dos personagens. Nos momentos em que há a mudança de foco, a câmera viaja até outra localização de maneira contínua, muitas vezes sem que haja cortes. A essa estatégia se unem tomadas aéreas do matagal que estabelecem a localização dos personagens e a distância de um para o outro, mostrando como eles se afastam cada vez mais à medida que tentam se encontrar, como mostra a figura 3:

Figura 3 ? amplos planos abertos estabelecem a localização dos personagens no matagal

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Conforme Becky e Cal vagam pelo matagal, o material original vai rapidamente se exaurindo. Páginas e páginas dedicadas a detalhar os efeitos do cansaço, da fome, da sede, da paranoia são algo difícil de se adaptar para a mídia audiovisual, pois tudo isso pode ser exibido em tela em questão de segundos. O resultado é que, na marca dos vinte minutos, o filme ? que tem 100 minutos de duração ? já adaptou quase todos os acontecimentos principais do conto. Em uma ponta da trama, Cal encontra o estranho garoto perdido, Tobin, que não parece ser confiável; noutra, Becky encontra o ensandecido pai de Tobin, Ross, um homem louco sob efeito da força sobrenatural que assombra o matagal. É nesse ponto que há a maior ruptura entre texto-fonte e adaptação: a mudança dos protagonistas.
A partir dos vinte minutos, o filme se envereda por outros caminhos, uma vez que todo o conto já fora adaptado. Após os confrontos com a família perdida no matagal, Cal e Becky são assassinados e seu paradeiro segue desconhecido para o mundo exterior. Passados dois meses no tempo diegético, o pai do filho de Becky, Travis McKean, parte em busca de pistas sobre o desaparecimento dela. No conto, Travis é apenas mencionado numa breve passagem em que Becky relembra seu malfadado relacionamento com o rapaz. Após a gravidez indesejada, Travis se nega a assumir a paternidade e termina o relacionamento por mensagem. A caracterização de Travis, ainda que breve, mostra alguém execrável, que chega ao ponto de insinuar um possível incesto entre os gêmeos irlandeses:

The girl wanted to swing in the backyard, and Becky said Go on, that?s fine, hardly paying any attention. At the time she was text-messaging with Travis McKean. They were having a fight. Becky didn?t even hear the back screen door slapping shut.
what am i supposed to tell my mom, Travis said, i don?t even know if I want to stay in college let alone start a family. And this gem: if we get married will i have to say I DO to your bro too? hes always around sitting on your bed reading skateboreding magazine, i m amazed he wasn?t sitting there watching the night i got you pregnant, you want a family you should start one with him (KING & HILL, 2012, s/p, grifo do autor)
[9: Tradução nossa: ?A menina queria se balançar no quintal, e Becky disse: Continue, tudo bem, mal prestando atenção. Na época, ela estava trocando mensagens de texto com Travis McKean. Eles estavam brigando. Becky nem mesmo ouviu a porta de tela traseira batendo.o que devo dizer à minha mãe, disse Travis, nem sei se quero ficar na faculdade, muito menos começar uma família. E esta pérola: se nos casarmos, vou ter que dizer ACEITO pro seu irmão também? ele está sempre sentado na sua cama lendo uma revista sobre skate, estou surpreso por ele não estar sentado lá assistindo na noite em que te engravidei, se você quer uma família, você deve começar uma com ele?]

Como observa Hutcheon (2013), o modo de engajamento ?mostrar? exige uma outra abordagem em relação ao modo ?contar?. Uma vez esgotado o material original, narrativa curta que se passa durante apenas uma tarde e, principalmente, no tempo psicológico dos irmãos, Vincenzo Natali teve de tomar liberdades criativas cada vez maiores para originar um longa-metragem completo. A primeira delas é o salto temporal diegético de dois meses que altera todo o status quo da trama fílmica; a segunda é a mudança no foco narrativo do filme, que passa a acompanhar o novo protagonista, Travis. Muito diferente de sua contraparte literária, o rapaz é retratado como um pecador em busca de redenção; alguém arrependido de ter abandonado uma moça grávida à própria sorte, que por sua própria culpa se sente na obrigação de desvelar que fim levaram Becky e o irmão.
A terceira estratégia de Natali, dessa vez uma criação totalmente autoral, serve como dispositivo para reunir Travis com os já falecidos Cal e Becky: a viagem no tempo. Introduzir esse recurso como parte da trama já no segundo ato, passados 40 minutos de película, sem qualquer estabelecimento prévio, pode parecer um salto grande para os espectadores. Não que seja algo inverossímil ou que ataque a coerência interna da trama, afinal, já fora percebido que as leis naturais não se aplicam ao que está dentro do matagal. Lá existe uma força de ordem sobrenatural que afeta tanto o espaço quanto os seres humanos, logo, por que não o tempo também?
O problema, para a crítica, parece ser a introdução da viagem no tempo de maneira tardia numa obra que, até então, parecia ser uma história de sobrevivência em condições inóspitas e sobrenaturais. A intromissão do sci fi no survivor horror parece incomodar ainda mais por ser integralmente de autoria do adaptador, ou seja, algo que não estava presente no texto-fonte e, portanto, supostamente dispensável, desprezível ou desnecessário quando Stephen King e Joe Hill já encerraram sua obra. O jornalista Cristopher Shultz assinala essa dissonância entre a viagem no tempo e o mote geral do filme ao afirmar que ?não há muita importância em tentar se situar em todas as linhas do tempo entrelaçadas, porque isso não ajuda a compreender o restante do filme? (SHULTZ, 2019, s/p). Shultz, inclusive, critica o fato do material original ser exaurido nos primeiros minutos de película, complementando: ?já que o conto inteiro dá, no máximo, trinta minutos de cenas, um monte de outras coisas acontecem para inflar a narrativa, e elas não são exatamente coisas boas? (SHULTZ, 2019, s/p).
[10: Tradução nossa. No original: ?not that it matters much trying to keep track of all the overlapping timelines, because it doesn't help the rest of the film make much sense?.][11: Tradução nossa. No original: ?as the novella in full makes for, at most, thirty minutes of footage, a bunch of other things happen to pad out the narrative, and they're not exactly good things?.]
As diferentes linhas do tempo são apresentadas gradativamente para justificar a entrada de cada um dos personagens principais no território insólito do matagal. Como presenciamos no início do filme, Cal e Becky foram atraídos pelos pedidos de socorro do garoto Tobin, porém Tobin estivera ali perdido por ter ouvido os gritos de Travis, que só entraria no matagal muito tempo após as mortes de Cal e Becky, o que resulta num paradoxo, um looping temporal. As relações de causalidade e as leis naturais são propositalmente distorcidas pelo elemento sobrenatural do filme: uma grande rocha negra localizada no exato centro do matagal. A rocha, aparentemente muito antiga e repleta de pinturas rupestres, está também presente no conto, ainda que nele não tenha a propriedade de alterar o fluxo do tempo:

He [Cal] was in a clearing ? a real clearing, not just beaten-down grass. In the middle of it, a huge black rock jutted out of the ground. It was the size of a pickup truck and inscribed all over with tiny dancing stick men. They were white, and seemed to float. They seemed to move. (KING & HILL, 2012, s/p)
[12: Tradução nossa: ?Ele [Cal] estava em uma clareira - uma clareira de verdade, não apenas grama batida. No meio dela, uma enorme rocha negra se projetava do solo. Era do tamanho de uma caminhonete e toda gravada com minúsculos homenzinhos dançantes. Eles eram brancos e pareciam flutuar. Eles pareciam se mover?.]


Uma vez inserido o elemento da viagem no tempo, o filme se envereda por caminhos ainda vez mais distintos do texto-fonte. Com maior foco na jornada de Travis para se redimir com Becky e seu filho ainda não nascido, Vincenzo Natali utiliza tropos, artifícios e situações que deixam o horror de sobrevivência cada vez mais distante, relegado apenas à primeira metade da película. Sintoma cabal desse afastamento é que, ainda no segundo ato, os protagonistas deixam o matagal, algo que nunca acontece no conto. A partir daí, o que se dá é uma perseguição digna dos filmes slashers, na qual Becky e Cal ? de outra linha temporal, Travis e Tobin são perseguidos pelo ensandecido Ross. Imbuído de força e velocidade sobre-humanas após entrar em contato com a rocha negra, o vilão possui a implacabilidade e a quase onipresença de outros grandes assassinos do cinema, como Jason, Freddy Krueger e Michael Myers. Em meio à perseguição slasher que se estende pela rodovia deserta e por um ringue de boliche abandonado, locais apenas mencionados no conto, ocorrem ainda certos lampejos de ficção científica, com o celular de Becky sendo capaz de receber ligações de outras linhas temporais. Através dessas chamadas, versões diferentes dos protagonistas tentam auxiliá-los a não cometer os mesmos erros que já os levaram à ruína em outros tempos.
Apesar dessas mudanças terem sido mal recebidas pela crítica, nós formulamos algumas hipóteses que podem justificá-las a partir de duas vertentes: adaptabilidade e mercadologia. Como fizemos questão de ressaltar durante o presente artigo, o processo de adaptação envolve, naturalmente, mudanças, adições e perdas. Quando se trata de adaptar um produto para uma mídia diferente, essas mudanças possivelmente serão mais acentuadas para que os elementos adaptados possam ser aclimatados à mídia destino. Com a tarefa de reformatar para o engajamento audiovisual uma história que se passa em um único cenário, com poucos personagens e cuja ação ocorre majoritariamente no tempo psicológico, o diretor e roteirista Vincenzo Natali teve de adotar drásticas estratégias para torná-la mais ?cinematográfica?. Com o uso desse termo, por falta de outro melhor, queremos nos referir à qualidade daquilo que possui apelo auditivo e visual, que pode fazer bom uso dos artifícios específicos da sintaxe fílmica.
Para tornar a trama mais dinâmica, Natali inseriu mais personagens e expandiu a participação daqueles que são secundários ou apenas mencionados no conto: Travis McKean, o vilão Ross Humboldt e o garoto Tobin Humboldt. Para evitar que o longa-metragem caia na mesmice visual em seus 100 minutos de duração, apresentou novos cenários a partir do segundo ato, deslocando a ação do matagal para outros locus horribilis inseridos no contexto do coração rural dos meio-oeste americano: a rodovia deserta à noite e um prédio de beira de estrada há muito abandonado. Cabe aqui um parêntese para ressaltar que, mesmo durante a porção do filme que se passa no matagal, Natali utiliza diversos artifícios de câmera e fotografia para evitar a repetição do cenário: tomadas aéreas, planos muito abertos ou de extrema aproximação ? close-ups, ângulos em plongée e contra-plongée.
O uso de close-ups em elementos naturais funciona para dar destaque e estranheza àquilo que, em situações normais, seria visto como apenas algo banal da natureza, algo corriqueiro e digno de pouca atenção, como o mato quebrado, o voo de um corvo ou uma gota de orvalho, conforme a figura 4. Ao dedicar tomadas com enquadramento fechado nesses elementos, a câmera de Natali desautomatiza a visão do espectador e rompe com a naturalidade da própria natureza, aumentando a tensão e contribuindo para a construção da sensação de insolitude.

Figura 4 ? close-up numa gota de orvalho que reflete o matagal alto

Fonte: (IN THE TALL GRASS, 2019)

Essa busca por tornar mais cinematográfica a experiência de estar perdido no matagal se torna patente quando o filme se envereda por outros subgêneros consagrados do horror, mais precisamente o horror de assassino ? ou slasher. Enquanto o final do conto exibe um breve mas visceral confronto entre Becky e Ross, a perseguição do vilão ao grupo de protagonistas se estende por todo o terceiro ato do filme, cruzando o matagal e adentrando a cenários outros. A dinâmica de perseguição possui muito mais apelo audiovisual que a lenta deterioração mental pela qual passam os personagens no clímax do livro, o que, novamente, se passa inteiramente no tempo psicológico dos irmãos.
O clímax do filme, portanto, recorre ao catártico sentimento de alívio do espectador para construir seu desfecho: com a derrota do vilão superpoderoso, o sacrifício do herói ? tropo que abordaremos mais adiante ? e a salvação dos demais protagonistas, o status quo retorna, na medida do possível, à normalidade; uma maneira de recompensar o espectador pela experiência tensa e aterrorizante através da qual acompanhou aqueles personagens. Já o clímax do conto, longe dos tropos cinematográficos ou de entregar qualquer alívio ou recompensa ao leitor, é focado principalmente no grotesco aborto de Becky após as lesões causadas por Ross Humboldt e oferece poucas explicações ao misturar alucinação e realidade numa onírica sequência de acontecimentos contados pela perspectiva da já traumatizada e quase morta Becky.
De outra banda, como frisamos na introdução, o serviço de streaming, como qualquer iniciativa de cunho privado, visa ao lucro. Dessa maneira, o adaptador parece recorrer a alguns temas e clichês ausentes do material-fonte com fito de tornar seu produto mais aprazível para o grande público e, consequentemente, mais rentável para a produtora que optou por financiá-lo. A primeira dessas mudanças é a adição de um herói arquetípico com o qual o espectador possa facilmente se identificar. Travis McKean sofre uma total repaginação do conto para o filme: ao invés de um terciário, torna-se um herói trágico em busca de redenção, um protagonista que cresce diante dos obstáculos e através do qual a jornada pelo sobrenatural ganha significado. Ao se sacrificar para salvar os demais ao fim da película, Travis se redime de ter abandonado Becky grávida, completa seu arco de expiação e permite que a história termine numa nota positiva que inexiste no conto.
Ademais, a viagem no tempo também pode ter sido inserida na adaptação por razões de mercado, uma vez que produções envolvendo essa temática têm ganhado notoriedade na década de 2010. O que antes fora um tema exclusivo da ficção científica penetrou outros gêneros como o thriller e o horror, originando sucessos de público e crítica como o horror slasher Happy Death Day (2017), sua sequência Happy Death Day 2U, e o blockbuster de ação e suspense Live. Die. Repeat.: Edge of Tomorrow (2014). O próprio Vincenzo Natali é familiar a essa estirpe de projeto, tendo idealizado o horror de baixo orçamento Haunter. O que todos esses filmes têm em comum é lançar seus personagens em situações em que são obrigados a reviver as mesmas situações repetidamente, tropo da ficção conhecido como ?looping temporal?, que também compõe a trama de In the tall grass a partir do segundo ato.
Para adequar uma narrativa curta à duração de um longa-metragem, é improvável que Vincenzo Natali tenha escolhido seguir a fórmula de sucessos recentes por mera coincidência. Como observado pelos críticos já citados, o looping temporal parece deslocado da temática inicial de sobrevivência que o filme apresenta em seu primeiro ato e que permeia todo o conto de King e Hill. Com isso em mente, a tentativa de apresentar um produto que entre na alçada de outros filmes de sucesso parece ter sido determinante para as escolhas adaptativas realizadas na produção de In the tall grass. De todo modo, por se tratar de uma questão mercadológica, análises mais aprofundadas que envolvem diversas variáveis ainda estão em andamento nessa pesquisa, sendo necessárias para confimação ou não dessa hipótese.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os pontos levantados por nossa análise, consideramos que, apesar da recepção adversa de seu produto, nenhuma escolha ou estratégia adaptativa utilizada no filme In the tall grass é aleatória ou esvaziada de propósito. Na tensão entre manutenção e transformação do texto-fonte, entre replicação e expansão, Vicenzo Natali consegue realizar uma adaptação enquanto adaptação (HUTCHEON, 2013), uma obra fílmica autoral e autônoma com intrínsecos laços de identificação para com o conto que lhe precede.
Com a tarefa de não apenas reconfigurar uma obra literária para o modo de engajamento audiovisual, mas, além disso, expandir uma narrativa curta para a duração de um filme longa-metragem, Natali lança mão de estratégias voltadas para a adaptabilidade do material-fonte e para a aceitabilidade mercadológica de seu filme. Do ponto de vista da adaptabilidade, são expandidas as participações de alguns personagens secundários; são elegidos um herói e um vilão arquetípicos, algo que não é feito no conto; a ambientação do filme supera o cenário do matagal, desbravando outros cenários para que o longa não corra o risco de perder dinamismo ou cair em repetições; há o uso ostensivo de recursos de câmera e fotografia para a construção da tensão e do insólito.
Ademais, algumas estratégias adaptativas parecem visar uma maior palatabilidade do produto para o mercado do streaming, como a inserção de elementos sci fi e do horror slasher; a utilização da temática da viagem no tempo que se mostra em voga noutras produções de suspense e horror; a adição de um herói trágico e, com ele, todo um arco de redenção que atribui ao filme uma mensagem moral de autossacrifício e um desfecho positivo que rompe sobremaneira com o texto-fonte, o qual se encerra tragicamente para os irmãos Cal e Becky e deixa no ar a certeza de que o matagal continuará a fazer vítimas no futuro.
Mas não só de mudança vive uma adaptação. Apesar das grandes alterações feitas sob a batuta de Vincenzo Natali, In the tall grass permance uma revisão declarada, ostensiva e reconhecível da obra de Stephen King e Joe Hill. Permancerem, sobretudo no primeiro ato, a insolitude dos acontecimentos, a influência opressiva do matagal enquanto locus horribilis e o desespero dos irmãos pela sobrevivência diante do sobrenatural. A parte isso, filme e conto seguem caminhos distintos, cada vez mais distantes entre si, se encontrando apenas ao final de tudo, como os próprios Cal e Becky perdidos na imensidão do matagal.

5. REFERÊNCIAS

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HINDS, Stephen. Allusion and intertext: dynamics of appropriation in roman poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HORROR QUEERS: In the tall grass (2019). Locutor: Trace Thurman [S. l.]: Horror Queers, 2019. Podcast. Disponível em: <https://www.patreon.com/horrorqueers> Acesso em: 10 fev. 2021.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. 2. ed. Florianópolis: Editora UFSC, 2013.
IN THE TALL GRASS. Direção de Vincenzo Natali. Netflix, 2019. Streaming (100 min).
KING, Stephen; HILL, Joe. In the tall grass. Esquire. Nova Iorque: jul./ago. 2012.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
MACIEL, Maria Esther. Para além da adaptação: formas alternativas de articulação entre literatura e cinema. In: NASCIMENTO, Eduardo et al. (orgs.). Literatura em Perspectiva. Juiz de Fora: UFJF, 2003.
MURRAY, Noel. On Netflix, ?In the Tall Grass? reveals the degree to which weeds are scary. LA Times, 2019. Disponível em: <https://www.latimes.com/entertainment-arts/movies/story/2019-10-04/in-the-tall-grass-review-netflix-stephen-king-horror> Acesso em: 10 fev. 2021.
ONDAATJE, Michael. The conversations: Walter Murch and the art of editing film. Toronto: Vintage Canada, 2002.
SHULTZ, Cristopher. Book vs Film: ?In the tall grass?. Litreactor, 2019. Disponível em: < https://litreactor.com/columns/book-versus-film-in-the-tall-grass> Acesso em 10 fev. 2021.
STAM, Robert. The dialogics of adaptation. In: NAREMORE, J. (Ed.). Film adaptation. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 2000.
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STEPHEN KING. Rotten Tomatoes, 2021. Disponível em: <https://www.rottentomatoes.com/celebrity/richard_bachman> Acesso em 11 fev. 2021.


Title
AUTHORAL LABYRINTHS: THE FILM ADAPTATION OF IN THE TALL GRASS, BY STEPHEN KING AND JOE HILL

Abstract
This paper aims to carry out a study on the adaptive strategies used in the remediation process of the short story ?In the tall grass? (2012), by Stephen King and Joe Hill, to the cinematic language of streaming. To this end, we propose to do an immanent reading based on the formal and thematic aspects of the two works: changes and permanence of narrative elements, formal and symbolic continuities and ruptures, in addition to the choices and cinematographic language resources mobilized by the adapter Vincenzo Natali, as well as their (possible) motivations. For that, we are based on the theories about the adaptation process proposed by Stam (2000), Bolter and Grusin (2000), Ondaatje (2002) and Hutcheon (2013). Based on the analysis, we conclude that, with the task of not only reconfiguring a literary work for the audiovisual engagement mode, but, in addition, expanding a short narrative to a full length feature film, Natali uses strategies related to the adaptability of the source material and the market acceptability of his film, namely: expanding the roles of secondary and tertiary characters; adding an archetypal hero as the main protagonist; expanding the story's scenarios, inserting sci fi and slasher horror tropes. In addition, many elements of cinematographic syntax are used to convey to the screen the tension and oppression of the locus horribilis portrayed in the short story, such as: aerial shots of the tall grass; extreme close-ups in pieces of nature; open frames to establish the location of the characters.

Keywords
Adaptation; Stephen King; Cinema; Streaming


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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
DOI: https://dx.doi.org/...
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Travessias, Cascavel, v. XX, n. X, p. XXX ? XXX, xxx./xxx. 2021.
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