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Travessias, Cascavel, v. 16, n. 2, p. 57-73, maio/ago. 2022.

DOI: https://dx.doi.org/10.48075/rt.v16i2.28143

 

EL ETERNO FEMENINO, DE ROSARIO CASTELLANOS, E GENI E O ZEPELIM, DE CHICO BUARQUE: CONVERGÊNCIAS DE SOCIEDADES MACHISTAS LATINO-AMERICANAS

 

Josiane Valcarenghi Ribeiro josianevalcarenghi@gmail.com

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Unioeste, Cascavel, Paraná, Brasil; https://orcid.org/0000-0001-5669-007X

 

Marcio da Silva Oliveira prof.marcioliveira2015@gmail.com

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Unioeste, Cascavel, Paraná, Brasil; http://orcid.org/0000-0002-0110-5635

 

 

RESUMO: Chico Buarque de Holanda é músico, dramaturgo, escritor e ator brasileiro. Trata-se de um dos maiores nomes da música popular brasileira, e, após retornar do exílio na Itália, compôs, para a peça A Ópera do Malandro, a música Geni e o zepelim (1979). Em sua letra, há uma crítica à forma como a sociedade brasileira demoniza o papel da mulher que foge do ideal proposto pelas convenções sociais – bela, recatada e do lar. Rosario Castellanos é considerada um dos maiores nomes da literatura mexicana contemporânea. Foi escritora de vários gêneros literários, além de filósofa, pensadora e investigadora. Sua peça El eterno femenino (1975), uma farsa, apresenta uma crítica contundente e bem-humorada do retrato da mulher na América Latina, tendo como recorte específico a sociedade mexicana. A junção desses dois autores serve-nos de propósito para confluir numa análise das características impostas por uma sociedade machista patriarcal, tanto lá (México), quanto cá (Brasil). Desse modo, o objetivo deste artigo é apontar convergências relacionadas à crítica feminista entre o discurso da peça de teatro mexicana e a letra da música brasileira – também elaborada para uma peça teatral. Como base teórica da análise de composição teatral, destaca-se Anatol Rosenfeld (1982), apontando elementos do drama como trincheira de resistência e desconstrução hegemônica, Fleck (2017), com um olhar sobre a relação entre história e ficção na América Latina como via de descolonização e, por fim, uma breve reflexão a partir da análise do discurso proposta por Pêcheux (2009).

 

PALAVRAS-CHAVE: Rosario Castellanos; Feminismo; Literatura Comparada.

 

 

1 PALAVRAS PRELIMINARES

“Josefa: [...] Somos tan pocas las mujeres mexicanas que hemos pasado a la historia.

Sor Juana: [...] nos hicieron pasar bajo las horcas caudillas de una versión estereotipada y oficial. Y ahora vamos a presentarnos como lo que fuimos. O, por lo menos, como lo que cremos que fuimos.”

Rosario Castellanos

 

“E ao deitar com homem tão nobre/ tão cheirando a brilho e a cobre/ preferia amar com os bichos”

Chico Buarque

 

Os países da América Latina possuem uma história oficializada marcada, por um lado, pela valorização dos invasores tornados heróis – navegadores, desbravadores, aventureiros, bandeirantes - e, por outro lado, pelo silenciamento, aculturação, escravização e mesmo extermínio de seu povo nativo. São países colonizados, explorados e culturalmente compostos por uma representação a partir do discurso do outro, do colonizador. Pêcheux (2009, p. 147) conceitua formação discursiva como “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.)” (grifo do autor). Nessas condições sociais, assim como as várias manifestações de opressão impingida por uma parcela da sociedade considerada hegemônica, a fala feminina passou a estar submetida hierarquicamente aos homens, atrelando-se, de modo violento, a uma ideologia machista e patriarcal.

Dentre os países da América Latina, marcados pela violência da colonização, destacamos o processo de dominação em relação ao gênero feminino no Brasil e no México, os dois países envolvidos nessa análise, e como tal processo é problematizado pelas manifestações artísticas – aqui, em especial, o teatro e a música popular. Para isso, o corpus escolhido é a peça El eterno femenino (1975), de Rosario Castellanos[1] e a letra da música Geni e o zepelim (1978), parte integrante da peça A Ópera do Malandro (1978), de Chico Buarque de Holanda[2]. Ambas as obras abordam a condição e a representação da mulher em uma sociedade machista, patriarcal, que se reconhece no direito de estipular e cobrar a “postura feminina adequada”. Bacelar, utilizando-se do discurso de Scott, traz a definição de patriarcado como

[...] o sistema hegemônico de dominação masculina formado a partir das relações desiguais de gênero e, se levarmos em consideração a definição foucaultiana de poder, podemos então entender melhor a afirmação de Scott (1989), quando esta diz que a construção do gênero se inicia no sistema parental, mas não se limita a este, estende-se para outras formas de interação institucional, como mercado de trabalho, educação, política, etc. (BACELAR, 2016, p. 24).

Enquanto Pêcheux, mencionado acima, traz a essa discussão a questão do direito de fala, Scott destaca o papel do patriarcado na constituição oficial do conceito de gênero. São dois elementos consideráveis que serão retomados no artigo para problematizar o papel do feminino em espaços colonizadores latino-americanos.

A peça teatral El eterno feminino (1975) é uma obra póstuma, elaborada a partir de um convite feito pelos amigos de Castellanos, Emma Teresa Armendáriz (atriz) e seu esposo, Rafael López Miarnau (diretor de teatro), em 1970. O convite foi rejeitado a princípio em virtude da mudança da escritora para Tel Aviv, mas, realizou-se posteriormente, em 1973, e a obra foi publicada em 1975. De acordo com os escritos da própria escritora, em uma carta que acompanha o manuscrito, ela se mostrava preocupada com a recepção da peça e pediu que sua montagem trouxesse ao palco algo engraçado e divertido. Dessa forma, o texto foi adaptado para o palco como uma farsa[3]. Castellanos, na rubrica em que apresenta as personagens, para deixar claro o que se espera da peça, vale-se de uma frase do Cortázar: “[...] la risa ha cavado siempre mas túneles que las lágrimas”[4]. A escritora reforça ainda a intencionalidade da interpretação das personagens quando afirma:

Los que aparezcan. Pero serán suficiente diez, actores - siete mujeres y tres hombres - siempre y cuando sea versátiles y comprendan que se trata de un texto no de caracteres sino de situaciones.

Esto quiere decir que los protagonistas han de definirse por las acciones (que, a veces, serán únicas), por las palabras (que no serán muy abundantes) y, fundamentalmente, por su vestuario y por el ambiente que se mueven.

[…] No tratará, en ningún momento, de ser realista, sino de captar la esencia, el rasgo definitivo de una persona, de una moda, de una época[5]. […] (CASTELLANOS, 1974, p. 21-22).

Ao deixar claro que serão poucas e como devem ser as personagens, verifica-se, já no início, a influência de uma das técnicas do teatro épico[6] brechtiano, apontadas por Rosenfeld (1982, p. 12): a utilização de poucos atores na representação de várias personagens, objetivando uma não identificação exacerbada do ator com a personagem – é a chamada quebra de ilusão da quarta parede -, fazendo com que se ressalte não o caráter ilusório do drama tradicional, mas as determinantes que compõem as relações sociais. Seguindo a linha da análise citada, ainda é possível identificar mais duas das técnicas descritas por Rosenfeld, que são a “perspectiva narrativa uma” (a história é contada e comentada didaticamente pela equipe que compõe a peça) e o uso da música, que abandona o caráter de ‘fundo’ e também assume a função de comentário crítico, o que atribui à exegese características sociológicas bastante valorizadas nos escritos brechtianos (ROSENFELD, 1985, p. 145). Este último elemento está bastante presente na peça A Ópera do Malandro, da qual a música Geni e o Zepelim faz parte.

A análise das obras selecionadas para o presente artigo adota o viés do épico brechtiano para mostrar a produção literária, dramática e musical como via de ressignificação histórica e não como mera descrição de eventos consagrados pela historiografia. Apontar isso interessa-nos para justificar que, desse processo, resultará “[...] não só a reprodução da realidade, mas a sua análise e interpretação em termos não puramente racionais, mas de plena comunicação estética” (ROSENFELD, 1982, p. 14 e 15).

Cabe ainda destacar que Brecht, como afirma Rosenfeld (1985, p. 147), entende que as relações inter-humanas individuais não são suficientes para a compreensão crítica dos eventos históricos, e por isso considera que “[…] as determinantes das relações sociais [...]” são basilares, pois, conforme o pensamento de Karl Marx, o ser humano é o resultado do conjunto de todas as relações sociais. Além deste posicionamento contrário ao teatro aristotélico, o teatro brechtiano apresenta uma segunda razão que

liga-se ao intuito didático do teatro brechtiano, à intenção de apresentar um ‘palco científico’ capaz de esclarecer o público sobre a sociedade e a necessidade de transformá-la; capaz ao mesmo tempo de ativar o público, de nele suscitar a ação transformadora. O fim didático exige que seja eliminada a ilusão, o impacto mágico do teatro burguês. […], ‘o teatro épico não combate as emoções’ (isso é um dos erros mais crassos acerca dele). ‘Examina-as e não se satisfaz com a sua mera produção’ (III, 70). O que pretende é elevar a emoção ao raciocínio (ROSENFELD, 1985, p. 148).

Rosario Castellanos, ao utilizar-se de recursos que aproximam sua obra do épico brechtiano almeja alcançar essa comunicação estética. Exibe, em El eterno feminino (1975), de forma engraçada, porém ácida, a condição da mulher na sociedade mexicana em meados da década de 1970. Para isso, utiliza-se de recursos didáticos como projeções de imagem, intervenções no enredo e recursos de distanciamento que desnaturalizam situações tornadas corriqueiras como, por exemplo, o casamento. No épico brechtiano, tais recursos didáticos inseridos no palco, têm o objetivo de causar estranheza no espectador para levá-lo a questionar o que se naturaliza na sociedade. Assim,

O espectador, começando a estranhar tantas coisas que pelo hábito se lhe afiguram familiares e por isso naturais e imutáveis, se convence da necessidade da intervenção transformadora [...]. A peça deve, portanto, caracterizar determinada situação na sua relatividade histórica para demonstrar a sua condição passageira (ROSENFELD, 1985, p. 151).

Quebra-se, desse modo, o elemento ilusório e catártico que causa o impacto mágico no espetáculo burguês e o diálogo entre atores/personagens e público adquirem característica de debate, discussão a respeito de determinantes sociais. A música adquire o caráter de comentário sociológico sobre os dados históricos e as projeções fomentam, pela estranheza, possibilidades de reflexão. Assim também o faz Chico Buarque de Holanda na letra da música Geni e o zepelim[7], composta para a peça A Ópera do Malandro – permeada de características épicas brechtianas - que, como a de Castellanos, também apresenta, de forma cômica e ácida a relativização da moral burguesa em solo brasileiro.

 

2 LUPITA E GENI: CONVERGÊNCIAS DE MULHERES LATINO-AMERICANAS

Lupita, personagem principal da peça teatral El eterno feminino (1974), de Rosario Castellanos, às vésperas do casamento, encontra-se no salão de beleza com o objetivo de arrumar seus cabelos para a cerimônia. Toda a ação principal se desenvolve nesse ambiente na qual participa a cabeleireira e um representante comercial que apresenta uma “inovação” no mercado da beleza. Logo no início da peça, nota-se um diálogo em que é possível identificar as primeiras marcas do patriarcalismo machista, fruto de uma formação histórico-social de colonização, que será retomado um pouco mais à frente.

No diálogo entre o representante, a dona do salão e a cabeleireira, que se intromete, surge uma reflexão quanto ao que as mulheres fazem enquanto esperam secar seus cabelos. Enquanto a cabeleira responde que elas se entediam, a dona do salão afirma que elas dormem. De posse dessa informação, o vendedor apresenta o argumento:

AGENTE: [...] Pero cuando se descubrió que el aburrimiento o el sueño eran solo transitorios y que podían tener otras consecuencias… entonces… entonces fue necesario inventar algo para conjurar el peligro.

PEINADORA: ¿Qué peligro?

AGENTE: Que las mujeres, sin darse cuenta, se pusieran a pensar. […] El pensamiento es, en sí mismo, un mal. Hay que evitarlo.[8] (CASTELLANOS, 1974, p. 28).

Este diálogo, como se nota, apresenta elementos suficientes para uma análise a respeito da visão masculina, aceita socialmente no contexto, sobre o gênero feminino. Para nosso propósito, destacamos, a partir do fragmento, a preocupação da sociedade em manter a mulher afastada da ‘nocividade’ do pensamento. A alienação, elemento fundamental aos propósitos colonizadores de sociedades alicerçadas sob o sistema patriarcal, é ressaltada, ironicamente, no trecho como via de problematização do papel social da mulher. No decorrer da peça, Castellano utiliza-se constantemente de expedientes como esse para desvelar a naturalização dessa engrenagem que impede à mulher o acesso ao direito de pensar.

Após a apresentação do novo aparelho (um indutor de sonhos), que resolve o problema das mulheres que ousam pensar, uma espécie de “alienante”, o representante propõe, então, um teste para a verificação da eficácia da novidade.

Lupita é a escolhida e, enquanto aguarda seu penteado matrimonial ficar pronto, é induzida a sonhos, e a opção que escolhem para ela é a de projeções de possibilidades de vida futura, condicionadas à decisão de casamento ou não. Nota-se, além do fato de que o sonho não é opção dela, mas imposição do homem/representante, também a estratégia de lhe incutir a moral vigente como verdade fundamental. A peça busca desconstruir tais verdades, utilizando-se de recursos do teatro de Brecht, como o combate à situação de ilusão que tais ‘verdades’ impõem: “[…] a arte como redentora quase religiosa do homem atribulado pela tortura dos desejos, a arte como sedativo da vontade, como paliativo em face das dores do mundo, como recurso de evasão nirvânica e paraíso artificial […].” (ROSENFELD, 1985, p. 148), tão presente no drama tradicional, é aqui desconstruída pela inserção, no palco, de aspectos que tornam o sujeito participante na transformação social. O público/leitor vivencia, junto ao ator/personagem, os pesadelos[9] que favorecem a tomada de consciência sobre a própria realidade opressiva da mulher, possibilitando análise e crítica dessas situações.

Assim, a personagem entra em um ciclo de pesadelos. O primeiro ocorre logo após o casamento, em sua noite de núpcias. Juan, o marido, questiona Lupita quanto à sua “pureza”, reprovando seu comportamento ao demonstrar desejo e ao reagir à sua presença:

JUAN: ¡Mujer impúdica! ¿Cómo te atreves a mirarme así?¡Bájate el velo, ipso facto, desvergonzada! Ahora sí. Mírame a los ojos y dime: ¿ha sido ésta la primera vez?

[…]

JUAN: (solemne, con la mano sobre el corazón) ¿y has llegado pura al matrimonio?[10] (CASTELLANOS, 1974, p. 34).

Nesse episódio, a denúncia se direciona à negação da sexualidade feminina e à obediência irrestrita da mulher a ideais religiosos, nos quais se fundamenta a moral burguesa, demarcando as relações de poder. De acordo com essa moral patriarcal, a mulher não tem direito de decisão sobre o próprio corpo, ter esse poder sobre si não é algo orgânico para o sexo feminino, visto que “[...] o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. (SCOTT, 1989, p. 21). Lupita se vê subjugada pelos valores de um marido machista; é criticada por não se comportar como esperado pela sociedade conservadora patriarcal.

A Geni, de Chico Buarque, é colocada na mesma situação. A música retrata um episódio ocorrido com uma personagem subalterna hostilizada por toda uma cidade dada sua condição de meretriz que, segundo seus moradores, ofende os valores tradicionais da família. Tal condição justifica seu apedrejamento e constantes humilhações por parte dos ‘cidadãos de bem’. Entretanto, diante de uma ameaça de catástrofe, Geni, a partir de suas habilidades sexuais, pode salvar a população, deitando-se com o comandante de um zepelim com canhões apontados para a cidade. Ironicamente, a peça enfatiza a relativização da moral burguesa com vistas a interesses individuais. O que outrora é preservação da moral – “Joga pedra na Geni/ joga bosta na Geni” – torna-se defesa de interesses individuais: “o prefeito de joelhos/ o bispo de olhos vermelhos/ e o banqueiro com um milhão [...] Vai com ele, vai Geni/ você pode nos salvar/ você vai nos redimir”.

Ao provocar, com jogos de palavras, efeitos cômicos e ácidos, a música, através de certo estranhamento, desperta a consciência a respeito das estratégias utilizadas pela sociedade capitalista para a sobrevivência dos interesses de suas elites políticas, econômicas e religiosas que levam em conta a exploração da classe marginalizada. Destaque para o trecho em que, de modo irônico, é apresentada a personagem: “ela é um poço de bondade/ e é por isso que a cidade/ vive sempre a repetir/ ‘joga pedra na Geni/ ela é feita pra apanhar/ ela é boa de cuspir/ ela dá pra qualquer um/ maldita Geni”.

Spivak (2014), em seu trabalho sobre sujeitos subalternos, aponta para o silenciamento das vozes daqueles que não detêm o poder e, em especial, das mulheres, pois essas sofrem duplamente a opressão vinda de uma sociedade detentora de uma construção ideológica de gênero. Apesar de ser possível depreender que Geni é livre na escolha com quem se deita, seu corpo é descrito como pertencente àqueles pelos quais é possuído:

De tudo que é nego torto/ Do mangue e do cais do porto/ Ela já foi namorada/ O seu corpo é dos errantes/ Dos cegos, dos retirantes/ É de quem não tem mais nada/ Dá-se assim desde menina/ Na garagem, na cantina/ Atrás do tanque, no mato/ É a rainha dos detentos/ Das loucas, dos lazarentos/ Dos moleques do internato/ E também vai amiúde/ Co'os velhinhos sem saúde/ E as viúvas sem porvir. (HOLANDA, 1979).

No fragmento, percebe-se, que Geni é censurada por uma vida sexual desregrada, mantendo relações com pessoas de diferentes raças, idades e gêneros – todos marginalizados -, o que confronta radicalmente a ideia de (des)pudor da sociedade capitalista. A música desmascara a relativização desse modo de viver capitalista, uma vez que, para defender interesses particulares, os moralistas de plantão, tipificados nas figuras do bispo, do prefeito e do banqueiro, não hesitam em entregar Geni ao sacrifício sagrado/profano, quando isso se torna conveniente. Assim, enquanto Juan (marido de Lupita), configura-se como inquisidor que julga a mulher como impura, indigna de um bom casamento na sociedade mexicana/latino-americana – a quem é proibido o pensamento e o prazer-; no Brasil, tal julgamento é realizado pela própria sociedade mediante tipificações do poder político, empresarial e religioso - que apedrejam a mulher que ouse confrontar a perpetuação de suas leis. O efeito sarcástico na peça se dá pelo desmascaramento da hipocrisia social de tais leis, pois, a afirmação “ela dá pra qualquer um”, de caráter essencialmente negativo em um primeiro momento, assume efeitos positivos quando se trata de defesa de interesses individuais.

A peça Ópera do Malandro (1978), na qual a música está inserida, como mencionado acima, destaca modos de exploração das classes marginalizadas pela sociedade capitalista. Tendo como cenário a periferia do Rio de Janeiro na Era Vargas, mostra a cooptação de personagens periféricas à contravenção como, por exemplo, a prostituição. Assim,

Na peça, que se contextualiza em um período no qual o capitalismo é incipiente no Brasil, presencia-se a abertura dos bancos nacionais ao capital estrangeiro, do mesmo modo que o início da exportação pelo Brasil de produtos industrializados. Além disso, a ênfase na necessidade de se interpretar esse modo de vida capitalista da década de 1940 leva o dramaturgo a problematizar a causa trabalhista deste período, para demarcar um discurso ideológico dominante capaz de manipular as massas. (OLIVEIRA, 2018, p. 296).

Geni, na peça, é um travesti ex-amante e capanga de um dos protagonistas. É importante destacar que, na música, não se percebe nenhum traço que explicite ser ela um travesti, pois o foco recai sobre suas aventuras e desventuras sexuais, mostrando-lhe como a representação da prostituta, a figura feminina violentamente explorada e apedrejada, o que demarca o modo como se constituem as relações de poder no sistema capitalista pautadas pelo moralismo patriarcal. Nessa discussão, o que nos importa é a crítica e o julgamento pelo comportamento feminino perante a sociedade conservadora-machista-patriarcal, e não a orientação sexual da personagem.

Sobre o viés conservador do comportamento feminino, Butler (2003) afirma que apresentar uma identidade única nas construções sociais das mulheres pode levar a um infortúnio, pois essa formação se dá também a partir de outros fatores. Bacelar (2016) reflete:

[...] a utilização do gênero como categoria analítica torna nítida a desigualdade entre os sexos em todo tipo de relação social e de poder, além disso, questiona o patriarcado e sua hegemonia de dominação. E não só, o gênero questiona também o padrão cultural socialmente construído em torno do sexo feminino e a homogeneização das características que implicam no ‘ser mulher’. (BACELAR, 2016, p. 24)

Somos seres sociais que se constituem na interação com o outro. O pensamento recriminatório, mesmo das mulheres que fazem parte das sociedades brasileira/mexicana, também se construíram a partir desse movimento dialético discursivo. Seguindo a progressão analítica iniciada nos parágrafos anteriores, Lupita está em casa, vivendo feliz, tranquila, sem maiores aflições. Sua mãe, ao visita-la, encontra-a alegre, entregue aos seus afazeres domésticos. Escandalizada, não entende o motivo dessas emoções e reprime o sentimento da filha:

LUPITA: Soy feliz, mamá.

MAMÁ: Allí está precisamente tu error. Una señora decente no tiene ningún motivo para ser feliz… y si lo tiene, lo disimula. Hay que tener en cuenta que su inocencia ha sido mancillada, su pudor violado. Ave de sacrificio, ella acaba de inmolarse para satisfacer los brutales apetitos de la bestia.[11] (CASTELLANOS, 1975, p. 38-39).

Lupita parece estar feliz em seu casamento, ainda mais com descoberta da gravidez. Sua mãe rapidamente lhe ensina como deve ser seu comportamento a partir de então, ações e reações que gradativamente vão transformando o momento que, para a personagem, era bom nesse sonho, em algo sofrido e ruim, e impactará em seu relacionamento matrimonial. Como se nota no trecho, muitas mulheres em contexto de opressão, a exemplo dessa mãe, acabam por incorporar o sistema de dominação como coisa natural, do qual não conseguem se desprender. Nesse sentido, os seres dominados, a mãe e a filha, inserem-se no processo de violência tanto física quanto simbólica, uma vez que sofrem a privação de direitos elementares, como o prazer no ato sexual, uma gravidez tranquila, ou a alegria na prática de atividades triviais.

MAMÁ: […] Necesitas una bata, Cómoda. Hay que dejar, desde el principio, que el niño crezca a su gusto. (Hace lo que dice.) Así ¿No te sientes mejor? No, no. Te lo estoy viendo en la cara: tienes náusea, una náusea horrible, ¿verdad?

LUPITA: No.

MAMÁ: ¿Cómo te atreves a contradecirme? ¿Quién sabe de estos asuntos: tú o yo?[12] (CASTELLANOS, 1975, p. 40).

A mãe de Lupita, ao notar que a filha foge ao padrão de sofrimento natural da mulher subordinada em uma sociedade dominada por homens, chega ao ponto de fazê-la ingerir um líquido que provocasse o vômito e a aconselha a tornar sua aparência deplorável, para demonstrar ao marido o sacrifício diante da ‘missão’ de trazer o filho ao mundo e, ao mesmo tempo, suavizar a opressão sofrida no ambiente doméstico. A mulher mais velha, que já conhece e sabe como se movimenta a engrenagem da sociedade em que vive, vai manipulando a filha de forma que tenha que parecer frágil e vulnerável e que o marido se sinta culpado por tais resultados. Botton (2019) assinala uma afirmação da própria escritora da peça para confirmar o pensamento excludente que a maternidade traz:

[...] a escritora passou a defender que a maternidade também é uma maneira de manter as mulheres subordinadas, relegadas ao lar e fora do mundo do trabalho e da sociedade masculinizada. Frente ao seu aprisionamento em casa e a tantas manobras de subordinação, ela também argumentava que é com a maternidade que as sociedades machistas oferecem às mulheres o direito à cidadania. (BOTTON, 2019, p. 211).

Aqui tem-se a gravidez como uma ferramenta para afastar o marido e, dessa forma, privar-se, ao menos momentaneamente, da violência física e simbólica que sofre constantemente. A mulher padece de todos os males impostos pelos valores machistas e patriarcais dessa sociedade e, de acordo com a mãe, precisa munir-se constantemente de estratégias para que sua condição se torne ao menos suportável.

Dentre os aspectos literários presentes em dramas de cunho épico-brechtianos, cujas características estão presentes tanto na peça quanto na música, dois elementos se sobressaem: a ironia e a paródia. Ambos provocam a comicidade, cumprem a função de relativizar determinada situação histórica mostrando-lhe o avesso, desconstruindo juízos de valor. A paródia, apropriando-se do discurso do outro, ridiculariza-o, atribuindo-lhe um valor semântico diverso, o que é preponderante na desconstrução de discursos hegemônicos. Tal elemento serve para a convergência da peça de Castellanos e da música de Holanda, que se apropriam do discurso bíblico ligado ao sacrifício.

No início do Segundo Ato de El Eterno Femenino, Lupita, novamente tomada pelo sonho, encontra-se com Eva, Adão e a Serpente em um museu de cera. No diálogo que estabelecem, o elemento paródico da criação – em seu sentido bíblico – ganha contornos políticos, uma vez que a Serpente se apresenta como exilada crítica ao Sistema: “Serpiente (misteriosa y triste): Soy um exilado político/[...] que estuve en desacuerdo con el regimén. Tu sabes que la tiranía no tolera la crítica”[13] (CASTELLANOS, 1975, p. 79). Eva, influenciada pela Serpente, descobre que o valor do trabalho é maior do que o tédio de uma vida entregue à submissão aos ditames de um regime que a explora. Ironicamente, Adão responde: “Pero sería una falta de respecto. Y Jehová es tan respectable: tiene una gran barba branca”[14] (CASTELLANOS, 1975, p. 83). Desse modo, para representar o sacrifício feminino, a dramaturga apropria-se parodicamente do discurso bíblico presente no livro do Gênese, desconstruindo-lhe pela sua ridicularização.

A ideia de sacrifício também está muito presente na construção da personagem Geni. Esse ambiente caótico no qual ela está situada remete à Sodoma bíblica, a “cidade com tanto horror e iniquidade”, e o comandante do dirigível – marcadamente masculino – assemelha-se a Deus que, por causa disso, “resolve tudo explodir” – em referência ao apocalipse. O ‘pecado’ no qual mergulha os habitantes citadinos não está especificado no entrecho da música, no entanto, abre espaço a indagações a respeito da exploração do homem pelo homem e os abusos cometidos nas disputas pelo poder. Entretanto, como nas tragédias gregas, o apaziguamento de tal situação, para o comandante – detentor do discurso oficializado -, não depende necessariamente de um processo dialético de justiça social, de uma revolução dos costumes, mas do mero sacrifício de um bode expiatório.

Nesse sentido, o comandante/Deus, senhor da vida e da morte, violenta o corpo feminino - “ele fez tanta besteira/ lambuzou-se a noite inteira/ até ficar saciado” – como argumento que justifica o resgate do equilíbrio moral da sociedade, uma espécie de comunidade pós-dilúvio, demonstrando, desse modo, que a perpetuação de um discurso oficial de ‘horror e iniquidade’ requer, não a sua desconstrução, mas o sacrifício do gênero feminino. E enquanto Geni padece pela violência sofrida, a cidade comemora a absolvição dos próprios crimes. O sacrifício da mulher, no entanto, não a redime de sua vida pregressa e, por isso, os citadinos repetem em euforia o refrão – “Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni...”- como resgate e legitimação de suas próprias arbitrariedades. Essa ‘alegoria bíblica às avessas’ proposta por Chico Buarque é o recurso paródico utilizado para demarcar a perpetuação desse sistema corrosivo que transforma a figura feminina em mártir necessária ao equilíbrio do sistema patriarcal.

No caso da peça de Castellanos, o recurso utilizado, como destacado acima, é o sonho. Após a primeira experiência de Lupita com a máquina no salão, inicia-se um novo sonho, no qual ela encontra-se em idade avançada. Os filhos já fazem parte da rotina e ela preocupa-se com as questões domésticas, com a educação dos pequenos e com a beleza física, pois “[…] ¿Qué retiene el marido sino una mujer siempre bien arreglada, siempre esbelta, lucidora?”[15] (CASTELLANOS, 1975, p. 48). Todo o primeiro ato utiliza-se, como recurso didático, desses sonhos que definem a vida matrimonial de Lupita e determinam o seu comportamento. Em sua totalidade, é uma tensão entre a manutenção dos valores machistas patriarcais e a tentativa de rompimento com os costumes sociais marcada, por vezes, pelo discurso machista reproduzido pela própria Lupita:

LUPITA: De todos modos, no te voy a dejar ir.

LUPITA II: ¿Al infierno? Si ya estoy en él.

LUPITA: A la Universidad. ¡Sobre mi cadáver!

PERICO: No le des ideas.

LUPITA II: ¿Se puede saber por qué?

LUPITA: Porque no vas a ser distinta de lo que fui yo. Como yo no fui distinta de mi madre. Ni mi madre distinta de mi abuela.

[…]

LUPITA II: ¿Y se de todos modos salgo?

LUPITA: Le voy a pedir a tu papá que intervenga. Y ellos me apoyarán para que tú te portes como debe ser[16]. (CASTELLANOS, 1979, p. 61)

No fragmento, percebem-se dois discursos: um revolucionário e um conservador. O primeiro manifesta-se na voz de Lupita II – a filha -, disposta a romper os grilhões que escravizam a mulher, que delimitam seu espaço ao ambiente doméstico, castrando seus ideais de emancipação; o segundo representa a perpetuação desse processo colonizador, demarcado no conformismo de Lupita – a mãe - diante da situação de violência em que se encontra e pela qual foram acometidas todas as gerações anteriores a ela. Trata-se, portanto, de um processo dialético, marcado por determinantes históricas que demonstram a possibilidade de ressignificação dos costumes através da consciência crítica.

No segundo ato da peça, Lupita é novamente induzida, pelo equipamento, a sonhos que perspectivam o papel sócio histórico da mulher. Agora, tendo como cenário um museu de cera, no qual figuras ganham vida, ela fará um passeio pela história, no qual personagens de extração histórica do México como La Malinche, Sor Juana, Imperatriz Carlota, além de Eva e a Serpente, personagens bíblicas, desconstroem, mediante suas falas, a representação oficializada de personagens femininas, ressignificando tais discursos. Caminhando pelas trilhas do processo histórico de colonização e trazendo para o diálogo os estudos de Fleck (2017) a respeito da presença de personagens de extração histórica em obras de ficção, percebe-se que o gênero dramático, em contexto latino-americano, fornece elementos pertinentes de desconstrução de um discurso tornado oficial, dando voz a figuras históricas, muitas vezes, silenciadas pela historiografia tradicional. Não é o objetivo desta análise apresentar tais elementos do romance histórico latino-americano no drama de Castellanos, mas acredita-se que tais considerações abrem perspectivas a novos estudos direcionados, especificamente, a esses elementos contidos na peça.

A segregação entre história e literatura é assunto de discussão desde o século XIX, sempre a primeira se sobressaindo à segunda como a “verdadeira”. Fleck (2017) afirma que, ao narrar os fatos históricos, no intuito de registrar o acontecido como a verdade, o historiador se vale do seu discurso, sujeitando-o às suas inclinações: “[...] Há, portanto, na atuação do historiador, um processo de (re)organização dos acontecimentos e uma configuração imaginativa das personagens presentes na narrativa.” (FLECK, 2017, p. 29).

Nesse sentido, a ficção, dada a liberdade de escrita que lhe é peculiar, aponta caminhos de ressignificação de tais eventos históricos, demonstrando perspectivas outras, aniquiladas, aculturadas ou silenciadas, que mostram que, ao contrário das ideias universais de heroísmo e bravura que permeiam a escrita hegemônica eurocêntrica, existe uma outra voz, marginalizada, que renarrativiza os fatos históricos levando em conta as determinantes sociais dos mesmos. Como é o caso da peça de Rosario Castellano e a de Chico Buarque, na qual a música se insere.

Rosenfeld afirma que “[…] o homem não é regido por forças insondáveis que para sempre lhe determinam a situação metafísica. Depende, ao contrário da situação histórica, que por sua vez, pode ser transformada.” (ROSENFELD, 1985, p. 150). Desta forma, Castellanos, utilizando-se da comicidade, dá voz a essas personagens para que contem sua versão do ocorrido historicamente vivenciado, possibilitando a reflexão e transformação dos comportamentos socialmente cristalizados. Juntando-se a elas, estão as personagens fictícias, que se tornam metáforas, tipificações do contexto mexicano. São figuras que, dotadas do direito à fala trazem à tona os elementos essenciais para uma consciência crítica a respeito do papel cristalizado da mulher na sociedade e sua consequente transformação dialética.

O mesmo acontece com a música de Chico Buarque, na qual se vislumbra, por um lado, a estigmatização da imagem da mulher que, dado seu comportamento, não se adequa aos padrões morais estabelecidos, o que justifica, por parte de uma classe hegemônica, qualquer tipo de violência contra o seu corpo; por outro lado, temos a desconstrução de tal discurso, pelo desvelamento da hipocrisia constante nessa sociedade corrosiva e discriminatória. Tais estratégias fazem com que, utilizando-se da alegoria, os compositores consigam ressignificar o papel social da mulher, demonstrando o quanto as questões de gênero precisam ser problematizadas para apontarem vias pertinentes de descolonização do pensamento.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reunir manifestações artísticas de Brasil e México, uma letra de música e uma peça de teatro – textos que trazem as representações de como as mulheres eram vistas, e se viam, a partir de conceitos sociais -, escritas na mesma década de 1970, momento histórico marcado por ditaduras nos países da América Latina, mostra o quanto ainda é necessário discutir a colonização e a descolonização, o patriarcado e o comportamento machista, espólio de nossa formação histórica.

Nesse artigo, destacam-se apenas alguns elementos presentes na peça de Rosario Castellanos. A obra El eterno feminino (1975), como já mencionado, abre-se em múltiplas perspectivas, o que demonstra sua relevância aos estudos literários voltados à ressignificação histórica e à literatura comparada, com enfoque na representação do feminino nas produções culturais contemporâneas. Os diálogos e cenas presentes na peça formam recortes despretensiosos, mas que adquirem profundidade analítica, da vida cotidiana de mulheres representativas da América Latina, apontando para questionamentos, como: até quando os homens terão o poder de legitimar os discursos contrários aos comportamentos femininos? E ainda, até quando as mulheres permitirão que eles tenham esse poder? Quais as consequências do silenciamento do discurso feminino por uma sociedade patriarcal, que se pauta em uma visão hegemônica eurocêntrica?

Tais questões, assim como à peça mexicana, também se dirigem à música brasileira de Chico Buarque, que procura problematizar o modo como o comportamento feminino se torna estigma de uma sociedade que naturaliza a violência de gênero, que banaliza a agressão contra o corpo feminino, revestindo-se de uma moral arcaica e hipócrita. Geni, personagem marginalizada, muitas vezes silenciada pela historiografia tradicional, representa as mulheres de um país no qual a taxa de feminicídio alcança índices[17] elevadíssimos a cada ano, onde a luta pela emancipação feminina sofre duros entraves por causa de uma mentalidade política ultrapassada que insiste em impor-se pela truculência. Da mesma maneira, Lupita, mais do que uma figura individualizada em uma peça teatral, torna-se a representação da resistência diante das violências sofridas pelo gênero feminino na sociedade mexicana. Assim,

 

Na literatura, para que uma personagem, um espaço ou um estado de coisas problematize tal situação [de resistência], é necessário que seu entrecho deixe transparecer a representatividade, ou seja, que a obra seja dotada, literal ou metaforicamente, de traços que manifestem um anseio coletivo de luta contra uma (in)justiça oficial. É dessa forma que se estabelece o salto no qual o sujeito, ao invés de reproduzir mecanicamente o esquema que o mantém atrelado à teia das instituições, desmascara tais engrenagens pelo caminho da resistência, colocando-se como polo negativo na dialética do discurso oficial. (OLIVEIRA, 2020, p. 256).

 

 Chico Buarque e Rosario Castellanos, nesse sentido, apontam, em suas obras, para as muitas convergências possíveis na busca pela emancipação feminina no contexto da América Latina. A peça mexicana e a música brasileira apresentam, como destaca a citação, traços manifestos de um anseio coletivo, de uma reivindicação pela valorização do papel da mulher na sociedade. Daí a relevância das análises propostas nesse artigo como caminhos de ressignificação histórica, social e cultural.

 

REFERÊNCIAS

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ALTHUSSER, Louis. Marx e Freud. In: EVANGELISTA, Walter José (org.). Freud e Lacan, Marx e Freud. Tradução de Walter José Evangelista. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

 

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BOTTON, Viviane Bagiotto. A mulher e o eterno feminino em Rosario Castellanos. História: Questões & Debates, Curitiba, v. 67, n. 1, p. 197-229, jan./jun. 2019.

 

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

 

CASTELLANOS, Rosario. El eterno feminino. México: Fondo de Cultura Económica, 1975.

 

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FLECK, Gilmei Francisco. O romance contemporâneo de mediação: entre a tradição e o desconstrucionismo – releituras críticas da história pela ficção. Curitiba: CRV, 2017.

 

OLIVEIRA, Marcio da Silva. O lugar de Dias Gomes no teatro brasileiro: contribuições para uma modernização crítica. 2018. 403 f. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá – UEM, Maringá, 2018.

 

OLIVEIRA, Marcio da Silva. O Santo Inquérito, de Dias Gomes: recepção e resistência no moderno teatro brasileiro. In: FLECK, Gilmei Francisco; OLIVEIRA, Marcio da Silva; CERDEIRA, Phelipe de Lima (org.). Imagens da América: Representações, expressões, resistências. Curitiba: CRV, 2020. p. 251-276.

 

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

 

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. São Paulo: Editora Unicamp, 2009.

 

REDAÇÃO RBA. Índice de feminicídio aumenta em 2020, e mulheres negras são as principais vítimas. Rede Brasil Atual: 17/09/2020. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/09/feminicidio-2020-mulheres-negras/. Acesso em: 16 mar. 2021.

 

ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1982.

 

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1985.

 

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SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. In: SCOTT, Joan. Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press, 1989. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila.

 

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.


 

Title

El eterno femenino, by Rosario Castellanos, and Geni e o Zepelin, by Chico Buarque: convergences of Latin American male chauvinist societies.

 

Abstract

Chico Buarque de Holanda is a Brazilian musician, playwright, writer and actor, one of the biggest names in Brazilian popular music. After his return from Italy, he composed many works and one of them is the music Geni and the zeppelin (1979) (who composes the play Ópera do Malandro (1978)), the letter that denounces the way Brazilian society judge’s women. Rosario Castellanos is, today, one of the biggest names in Mexican literature; she was a writer of several literary genres, as well as a philosopher, thinker and researcher. Her play El eterno femenino (1975), a farce, brings a humorous criticism, but it denounces the portrait of women in Mexican society (say, Latin American). The combination of these two authors serves us as a purpose to converge in an analysis of the characteristics imposed by a patriarchal machist society, both there (Mexico) and here (Brazil). The purpose of this article is to point out convergences between the discourse of the play and the lyrics of the song, related to women's issues. In this way, we will walk through the theoretical basis of analysis of theatrical composition proposed by Anatol Rosenfeld (1982), a look at the relationship between history and fiction in Latin America proposed by Fleck (2017) and, finally, a quick reflection through discourse analysis proposed by Pêcheux (2009).

 

Keywords

Rosario Castellanos; Feminism; Comparative Literature.

 

 

Recebido em: 02/09/2021.

Aceito em: 21/06/2022.



[1] Rosario Castellanos foi escritora, filósofa, pensadora e pesquisadora, de nacionalidade mexicana, viveu de 1925 a 1974. Em 1971, foi nomeada embaixadora do México em Tel Aviv, dedicou-se a discutir as questões sobre opressão cultural e de gênero, influenciando até a atualidade sobre a teoria feminista e os estudos culturais. Fonte:

[2] Francisco Buarque de Holanda, músico, dramaturgo, escritor e ator brasileiro, nascido em 1944, exilou-se na Itália em 1969 em virtude do forte período de repressão no Brasil, e retornou em seguida (1970), sendo ativo na luta pela democracia do país. Fonte:

[3] “[...] À farsa geralmente se associa um cômico grotesco e bufão, um riso grosseiro e um estilo pouco refinado: qualificativos condescendentes e que estabelecem de imediato e muitas vezes de maneira abusiva que a farsa é oposta ao espírito, que ela está em parte ligada ao corpo, à realidade social, ao cotidiano. [...]” (PAVIS, 2008, p. 164).

[4] Tradução de Josiane Valcarenghi: O riso tem aberto mais túneis que as lágrimas.

[5] Tradução de Josiane Valcarenghi: Os que aparecerem. Serão suficientes dez atores – sete mulheres e três homens - sendo sempre versáteis e que compreendam que se trata de um texto de situações, não de caracteres. Isto quer dizer que os protagonistas devem ser definidos pelas ações (que, às vezes, serão únicas), pelas palavras (que não serão muitas) e, fundamentalmente, pelo vestuário e ambiente em que transitam. Não se trata, em nenhum momento, de ser realista, mas de captar a essência, a definição de uma pessoa, de uma moda, de uma época.

[6] Brecht, na elaboração de seu teatro épico, coloca-o em contraposição ao chamado teatro aristotélico ou tradicional. Para isso, pontua-se, em sua teoria, as seguintes distinções: no teatro tradicional, “o diálogo dramático é, precisamente, o recurso literário mais adequado para apresentar vontades contrárias que defendem valores e posições antagônicos. Tradicionalmente, o que não pode ser articulado através do diálogo não existe para o teatro rigoroso, dramático. Toda a realidade é reduzida ao diálogo interindividual, apoiado pela cenografia que tentam reproduzir o ambiente em que as personagens dialogam e atuam. [...] O teatro épico não se atém a esse modelo rigoroso. Distingue-se pela sua estrutura mais aberta, repleta de episódios que não se integram na linha de uma ação una, contínua, de tempo reduzido e lugar fixo (ou seja, o teatro épico rompe as chamadas unidades de ação, tempo e lugar). Abre-se a um mundo maior pela própria variedade de tempos, lugares e episódios que apresenta e, dessa forma, ultrapassa o diálogo interindividual pela riqueza cênica, pela multiplicidade de elementos visuais e imaginários que tendem quase a se sobrepor à exposição puramente verbal, declamada”. (ROSENFELD, 2012, p. 27-28)

 

[7] É importante retomar a firmação de que não é o intuito deste artigo analisar a letra da música a partir dos conceitos teóricos da linguagem “música”, e sim utilizar-se do tema abordado.

[8]Tradução de Josiane Valcarenghi: [...] Mas quando descobriram que o tédio e o sonho eram transitórios e que poderia haver outras consequências... então... então foi necessário inventar algo para afastar o perigo. / CABELEREIRA: Que perigo? / AGENTE: Que as mulheres, sem perceber, começaram a pensar. [...] O pensamento é, na verdade, um mal. Deve-se evitá-lo.

[9] O termo ‘pesadelo’ é providencial aos propósitos da peça, uma vez que representa a tomada de consciência, processo doloroso porque ultrapassa a zona de conforto, em relação ao silenciamento do gênero feminino frente às questões sociais e individuais.

[10]Tradução de Josiane Valcarenghi: JUAN: Mulher sem vergonha! Como se atreve a me olhar assim? Abaixe o véu, ipso facto, desavergonhada! Agora sim. Olhe-me nos olhos e me diga: Essa foi sua primeira vez? [...] / JUAN: (de forma solene, com a mão sobre o coração). Manteve-se pura até o casamento?

[11] Tradução de Josiane Valcarenghi: LUPITA: Sou feliz, mamãe. / MAMÁ: Exatamente este é o seu erro. Uma senhora decente não tem nenhum motivo para ser feliz… E se o tem, o dissimula. Você precisa considerar que teve sua inocência manchada, seu pudor violado. Uma ave de sacrifício que acaba de ser sacrificada para satisfazer o apetite brutal da besta.

[12] Tradução de Josiane Valcarenghi: MAMÃE: [...] Você precisa de uma bata. Confortável. Precisa deixar, desde o início, que a criança cresça à vontade. (Faça o que digo) Assim. Não se sente melhor? Não. Não está. Posso ver em sua expressão. Você está com náuseas. Náuseas horríveis. Não é? / LUPITA: Não. / MAMÃE: Como se atreve a me contradizer? Quem entende desse assunto, você ou eu?

[13] Tradução de Josiane Valcarenghi: Serpente (misteriosa e triste): Sou um exilado político/ [...] que estive em desacordo com o regime. Tu sabes que a tirania não tolera a crítica.

[14] Tradução de Josiane Valcarenghi: Mas seria uma falta de respeito. E Jeová é tão respeitável: tem uma grande barba branca.

[15] Tradução de Josiane Valcarenghi: O que segura um marido se não uma mulher sempre bem arrumada, bonita e esbelta?)

[16] Tradução de Josiane Valcarenghi: LUPITA: De qualquer forma não vou te deixar ir. / LUPITA II: Pro inferno? Mas já estou nele. / LUPITA: A Universidade. Nem morta! / PERICO: Não dê ideia. / LUPITA II: E posso saber porquê? / LUPITA: Porque você não será diferente do que eu fui. Como eu não fui diferente de minha mãe. Nem minha mãe foi diferente de minha avó. / [...] LUPITA II: E se, mesmo assim, eu for? / LUPITA: Pedirei ao seu pai para intervir. E eles me apoiarão para que você seja como deve ser.

[17] “Os seis primeiros meses de 2020 tiveram aumento no número de mulheres vítimas de violência no Brasil ao se comparar com o mesmo período do ano passado. De acordo com levantamento do “monitor da violência”, as principais vítimas de feminicídio são mulheres negras. Nos primeiros seis meses de 2020, 1890 mulheres foram mortas de forma violenta, boa parte em plena pandemia do novo coronavírus – um aumento de 2% em relação ao mesmo período de 2019. Segundo o levantamento, 631 desses crimes foram de ódio motivados pela condição de gênero, ou seja, feminicídio (REDAÇÃO RBA, 2020). Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/09/feminicidio-2020-mulheres-negras/. Acesso em: 15 mar. 2021.