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Travessias, Cascavel, v. 16, n. 2, p. 2-18, maio/ago. 2022.

DOI: https://dx.doi.org/10.48075/rt.v16i2.28696

 

A SEGMENTAÇÃO NÃO CONVENCIONAL (HIPOSSEGMENTAÇÃO) EM PRODUÇÕES ESCRITAS DE ESTUDANTES DO 4º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

 

Ana Caroline Montrezol Diniz ana.cmd@hotmail.com

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Unioeste, Cascavel, Paraná, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-3089-2017

 

Sanimar Busse sani_mar@yahoo.com.br

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Unioeste, Cascavel, Paraná, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-3818-6579

 

Stefani Alves do Carmo stefanialves1007@gmail.com

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Unioeste, Cascavel, Paraná, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-6664-1455

 

Thais Goldeff Hahn –  thaisgoldeffhahn@gmail.com

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Unioeste, Cascavel, Paraná, Brasil; https://orcid.org/0000-0001-8304-9990

 

 

RESUMO: Este artigo apresenta dados relativos à segmentação não convencional de palavras, especificamente o fenômeno de hipossegmentação, presente em produções escritas de estudantes do Ensino Fundamental. Tem-se o objetivo de analisar o fenômeno da hipossegmentação (junção indevida de palavras) e as possíveis motivações para a sua realização nas produções textuais dos estudantes. As reflexões fundamentam-se em autores da área da fonética, fonologia e variação linguística como Bisol (2000, 2005), Bortoni-Ricardo (2005), Busse (2013), Cagliari (2006, 2009), Mollica (2004) e Oliveira (2005). Com relação aos procedimentos metodológicos, destaca-se que este estudo pressupõe os processos qualitativos interpretativistas, desse modo, os resultados foram gerados a partir de uma perspectiva metodológica amparada na Linguística Aplicada. A partir da pesquisa realizada, constata-se que os desvios ortográficos presentes nas produções dos estudantes são resultantes do trânsito de práticas sociais orais para práticas sistematizadas de escrita, assim, evidenciam as hipóteses construídas pelos estudantes durante o processo de aquisição da modalidade escrita da língua portuguesa. Os dados reiteram a necessidade do trabalho sistêmico e permanente com os aspectos fonográficos da língua, cabendo ao professor a análise das produções textuais dos alunos com o intuito de atestar as eventuais dúvidas dos estudantes, e considerar os desvios como parte integrante do processo de aprendizagem.

 

PALAVRAS-CHAVE: Fala; Escrita; Segmentação não convencional.

 

 

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

O ensino e a aprendizagem da escrita é um processo desafiador para professores e alunos, principalmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental, quando faltam conhecimentos básicos sobre o funcionamento da língua no nível fonético-fonológico e sobre os princípios que regem a escrita. Nos primeiros anos de contato com a escrita, o estudante utiliza-se da bagagem linguística constituída a partir dos usos que faz da língua na modalidade oral.

Miranda e Matzenauer (2010) reiteram que ao construir seus conhecimentos sobre o sistema de escrita, a criança extrai informações das suas experiências de letramento e aciona outros conhecimentos linguísticos construídos no decorrer de sua vida por meio de suas vivências e interações sociais. Assim, no processo de aquisição da escrita, o aprendiz retoma conhecimentos já construídos de modo inconsciente, especialmente os relacionados à fonologia de sua língua, e à medida que se apropria da escrita, estes tornam-se disponíveis ao acesso consciente, pois passam a refletir sobre o sistema linguístico.

Budke e Busse (2018) destacam que,

 

A aquisição do código compreende o contato com estruturas da língua, o que exige graus de abstrações que cambiam entre fala e escrita. Nesta fase, o trabalho mais sistemático com a diversidade linguística e a consciência fonológica pode auxiliar o aluno a percorrer o trajeto que o leva das hipóteses iniciais sobre a escrita até a compreensão do sistema (BUDKE; BUSSE, 2018, p. 502).

 

A consciência sobre este percurso do aluno de aquisição da escrita é fundamental para que sejam desenvolvidas estratégias mais assertivas na condução do processo. Ao identificar as hipóteses utilizadas para codificar a fala, o professor poderá auxiliar o aluno a reelaborá-las de forma a ampliar a autonomia da escrita em relação à modalidade oral da língua, promovendo, ainda, o conhecimento das regras ortográficas que regem a língua portuguesa, haja vista que incumbe-se à escola o papel de tornar os alunos aptos a fazer uso da norma-padrão, dado que o ambiente escolar, possivelmente, será o único espaço de contato e aprendizagem do estilo formal de linguagem.

Para Morais (2007), apesar de toda riqueza cultural que a variedade linguística utilizada pelos falantes representa, a ortografia possui significativo valor, pois assegura que qualquer leitor reconheça uma dada palavra escrita. Desse modo, a ortografia torna-se essencial à comunidade linguística que compartilha dada língua.

Para Carmo e Busse (2021),

 

Embora haja uma visão distorcida sobre o trabalho com a ortografia, pautada, principalmente, numa relação direta entre leitura e construção do conhecimento ortográfico, na memorização e na repetição, os textos dos estudantes refletem percursos conflituosos na construção do conhecimento gráfico/ortográfico da escrita, que tem como ponto de partida a transcrição da fala (CARMO; BUSSE, 2021, p. 22).

 

Os conhecimentos linguísticos trazidos pelos estudantes ao ingressarem na escola, especialmente sobre a modalidade oral da língua, são carregados das crenças e atitudes do meio que os circunda. Na escola, o estudante passa a ter contato com o código escrito de forma sistêmica, assim, é comum que se faça presente em suas produções textuais traços de oralidade, como é o caso da hipossegmentação, pois utilizam-se da fala como base para o registro escrito.

Segundo Busse (2015), os desvios gráficos apresentados pelos alunos nos primeiros anos de escolarização são admissíveis, pois nessa etapa, precisam conciliar a

 

[...] experiência referencial de uso da língua, baseada na oralidade, que se manifesta por meio da fala, na modalidade informal e espontânea, com as manifestações linguísticas mais monitoradas, em que prevalecem regras baseadas em abstrações, e na lógica da interação imediata (BUSSE, 2015, p. 26).

 

Desse modo, o estudante pode vir a relacionar a sua fala à escrita e assim, principalmente nos textos espontâneos, registrar as palavras da forma como fala, devido à possibilidade de um som ser grafado por mais de uma letra, como é o caso de “seguro” e “cimento” (CARMO; BUSSE, 2021), ainda, é comum que façam a junção de palavras como por exemplo “tenque” para “tem que”, em virtude da fugacidade da fala.

Abaurre et al (1997) abordam que os registros expressos nas produções escritas dos alunos são

 

[...] preciosos indícios de um processo em curso de aquisição da representação escrita da linguagem, registros dos momentos em que a criança torna evidente a manipulação que faz da própria linguagem, história da relação que com ela (re)constrói ao começar a escrever/ler (ABAURRE et al., 1997, p. 16-17).

 

À medida que avança no processo de alfabetização, principalmente no domínio do código escrito, o aprendiz compreende que fala e escrita são distintas modalidades da língua. Após tal percepção, o estudante passa a controlar quantitativa e qualitativamente sua escrita, que se apresenta inicialmente com caráter fonético e distante da convenção ortografia.

Ao analisar os desvios ortográficos presentes nas produções textuais das crianças, é possível observarmos que os estudantes possuem “apego às formas fonéticas da língua, em lugar das formas ortográficas” (CAGLIARI, 2009, p. 25). Desse modo, conhecer as características linguísticas dos aprendizes torna-se essencial, uma vez que tais aspectos se farão presentes em suas produções escritas. Cagliari (2009) afirma que:

 

Uma criança que escreve disi não está cometendo um erro de distração, mas transportando para o domínio da escrita algo que reflete sua percepção da fala. Isto é, a criança escreveu a palavra não seguindo sua forma ortográfica, mas segundo o modo como ela pronuncia. Em outras palavras, fez uma transcrição fonética (CAGLIARI, 2009, p. 26).

 

Os “erros ortográficos” que os aprendizes cometem são “sistemáticos e previsíveis e por meio deles são conhecidas as características do dialeto em questão” (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 25). Dessa forma, os “erros” denotam uma reflexão sobre a língua e as hipóteses que o indivíduo está formulando e reformulando sobre este sistema.

Vale ressaltar que os desvios ortográficos realizados pelos estudantes, vistos como “erros” nos primeiros anos do processo de escolarização devem ser considerados como tentativas de construção dos conhecimentos fono-ortográficos[1].

Ao refletirmos sobre a heterogeneidade gráfica em produções escritas de estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental, segundo Morais (2007), é fundamental ponderar sobre os percursos e hipóteses que o aluno utiliza ao fazer uso do código escrito no momento de produção textual e qual é o papel do docente diante desta situação, visando auxiliá-lo na superação dos possíveis obstáculos encontrados no decorrer do processo de ensino e aprendizagem. Entendemos que o ponto de partida é a identificação das ocorrências, para a aplicação das intervenções necessárias.

Desse modo, é necessário que os docentes consigam reconhecer na escrita dos educandos a natureza dos registros não convencionais[2], para que a partir da interpretação e reflexão dos dados, desenvolva-se um trabalho significativo e eficaz, que possa suprir as demandas e atender as necessidades dos alunos (MOLLICA, 2004). Para Oliveira (2005), uma classificação das ocorrências de desvios de escrita “não é apenas possível, mas também desejável” (OLIVEIRA, 2005, p. 42), para separar os fenômenos detectados segundo a sua natureza, o que pode ser determinante na elaboração de propostas de intervenção pedagógica.

A partir da análise das cartas de apresentação produzidas por estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental, emergiram alguns questionamentos, os quais nortearam a pesquisa: o fenômeno da hipossegmentação (junção indevida de palavras) está presente em produções escritas de estudantes do Ensino Fundamental? Quais são as possíveis motivações para ocorrência da hipossegmentação nas produções textuais dos estudantes?

            Visando apresentar as discussões, o presente estudo está organizado em cinco seções: na primeira, abordamos sobre a fala e a escrita e a relação estabelecida entre essas modalidades da língua no decorrer do processo de aquisição do código escrito. Em seguida, refletimos sobre o fenômeno da segmentação não convencional de palavras, especificamente a hipossegmentação. Logo, apresentamos a organização e o caminho metodológico desenvolvido na presente pesquisa. Na quarta seção, destacamos as ocorrências de hipossegmentação evidenciadas nas produções escritas dos alunos e refletimos sobre esses desvios ortográficos; e, por fim, apresentamos nossas considerações finais.

 

2 DA ORALIDADE À ESCRITA: A SEGMENTAÇÃO NÃO CONVENCIONAL

 

A fala é segmentada em torno de unidades de acentos, enquanto na escrita a segmentação ocorre em torno das unidades de sentido. O estudante, no momento de grafar as palavras, apoia sua escrita na modalidade oral e se baseia no ritmo prosódico presente na fala, não se atentando às orientações ortográficas que constituem o processo de escrita, registrando vocábulos diferentes em um único segmento, hipossegmentação, ou separando um vocábulo em mais de um segmento, hipersegmetação.

Budke e Busse (2018) destacam que

 

[...] a aquisição da escrita caracteriza-se como um processo de aprendizagem difícil e complexo, visto que o aprendiz terá que passar de conhecimentos inconscientes para conhecimentos conscientes. Diante dessas considerações, faz-se necessário ter uma perspectiva de análise dos dados de segmentação da escrita centrada não só na fonologia prosódica, mas também no modo heterogêneo de constituição da escrita (BUDKE; BUSSE, 2018, p. 499).

 

As segmentações da modalidade oral não correspondem aos espaços em branco que há entre as palavras que caracterizam. Desse modo, a fala é “uma cadeia contínua de sinais acústicos e não é dividida em palavras” (NÓBREGA, 2013, p. 59-60). Considerando que durante o processo de aprendizagem, a criança apoia-se na oralidade no momento de escrita, torna-se frequente e esperado que aconteçam segmentações não convencionais.

Para Ferreira e Busse (2019),

 

[...] o português escrito apresenta convenções que regulam seu funcionamento e resultam da própria história da formação da língua. Essas convenções revelam aspectos que precisam ser apresentados aos aprendizes desde os primeiros contatos com a escrita. A segmentação das palavras é parte desse sistema convencional, e tem por finalidade delimitar fronteiras entre as palavras de forma a facilitar a leitura, orientando assim, o leitor no percurso da escrita (FERREIRA; BUSSE, 2019, p. 247).

 

A compreensão de que a escrita, diferentemente da fala, nas situações mais espontâneas, é regida por regras convencionadas, pode auxiliar o aluno a observar que a relação entre fala e escrita não é transparente. O processo de escrita é elaborado a partir de condições específicas, às vezes, regido pela fala, às vezes, pela combinação de elementos da Morfologia e da Sintaxe.

Para a descrição das ocorrências de segmentação não convencional, Cunha e Miranda (2009) apresentam dois grupos de palavras, a palavra gramatical e a palavra fonológica. A palavra gramatical, segundo as pesquisadoras, refere-se ao grupo de termos que não possui acento primário, ou seja, os morfemas que necessitam de outro morfema ou sintagma para terem significância. Por sua vez, a palavra fonológica consiste no montante de palavras que possuem o acento primário, portanto, têm significado dentro da língua. No primeiro grupo, encontramos a classe dos artigos, preposições, conjunções e pronomes, ou seja, os elementos clíticos[3]; enquanto, no segundo grupo, encontramos a classe dos verbos e dos substantivos, por exemplo.

Diante dos dois grupos de palavras, é possível a realização de quatro combinações: a) palavra gramatical + palavra fonológica; b) palavra fonológica + palavra gramatical; c) palavra gramatical + palavra gramatical; e por fim, d) palavra fonológica + palavra fonológica (CUNHA; MIRANDA, 2009, p. 132).

Abaurre et al (1997), aborda que ao determinarem hipóteses sobre a escrita, os alunos nos deixam ver as evidências “da marca inequívoca da relação sujeito/linguagem” (ABAURRE et al, 1997, p. 16-17), pois, mesmo que hipoteticamente, agem sobre a linguagem. Assim, a escrita torna-se “o seu melhor objeto de experimentação” (CUNHA, 2004, p. 92), evidenciando o processo de apropriação das convenções orto-gramaticais, como também o desenvolvimento das habilidades metalinguísticas.

Desse modo, os estudantes, ao realizarem o processo de hipossegmentação, estão enfatizando

 

[...] características da dimensão sonora (mais especialmente de natureza prosódica) [...] reprodução gráfica de grupos compostos pela junção de clíticos que dependem, quanto à acentuação, das palavras que os seguem. De um ponto de vista linguístico, esse parece ser o critério que, de modo mais marcado, determina a hipossegmentação e, por meio dela, a indiciação de um momento de circulação do escrevente pelo que imagina ser a gênese da escrita (CORRÊA, 2004, p. 127).

 

Assim, ao tratar das questões relacionadas à influência da fala na escrita, é preciso compreender que ao optar por determinadas formas e não outras, a criança está fazendo tentativas de possíveis adequações que tornem a sua escrita o mais próximo da fala adulta e de sua própria fala, sendo essas referências para apropriação do código escrito.

Além disso, há de se compreender que a fala e a escrita são modalidades pertencentes a uma mesma língua e complementares uma da outra, entretanto, cada modalidade apresenta a sua própria forma de manifestação, sendo ela acústica-articulatória ou visual-ortográfica.

 

3 GERAÇÃO DE DADOS

    

Nesta seção, apresentaremos o percurso metodológico da presente pesquisa, visando contextualizar o processo desenvolvido para a geração de dados.

O corpus apresentado neste artigo corresponde a produções textuais referentes ao gênero textual carta de apresentação desenvolvidas por estudantes do 4° ano do Ensino Fundamental pertencentes a uma escola da rede pública da região Oeste do Paraná. Delimitamos nosso corpus a vinte e duas produções textuais, das quais dezesseis produções apresentaram índices significativos de desvios ortográficos por junção indevida de palavras, constituindo nosso corpus de análise para o presente estudo.

As produções textuais foram realizadas em decorrência da troca de professora regente dessa turma, que com o intuito de conhecer seu alunado apresentou-se por meio de uma carta e propôs aos alunos que assim também fizessem. Aos estudantes foram expostas as informações que deveriam conter em uma carta de apresentação, a linguagem a ser utilizada, dentre outros elementos composicionais como: estrutura textual e aspectos relacionados à coesão e à coerência.

Apresentamos, a seguir, duas produções textuais que compõem nosso corpus.

 

 

Quadro 1 Transcrição da carta de apresentação desenvolvida por estudante do 4° ano do E.F.

1 Tenho 11 anos e moro comeus pais, faso as tarefa decasa e gosto muintode estudar.

2 Na minha familia tem quatro pessoas eu meu pai minha mãe e minha irmã que sechama

3 Karen. Agente

4 briga bastante porcausa que agente gosta demecher no celular eu gosto de brincar comeus

5 amigos e umpoco

6 comeus dois cachorros que sechamam Lili e Tom.

7 Eu comecei a estudar aqui nessa escola quando eu era piqueno, porque comeu morava

8 longe meu pai

9 escreveu eu nessa escola porque faz tempo moro perto da escola.

10 Tem um minino nessa sala que meprovoca bastante daí não consigo me concentrar

11 nas tarefas da professora

12 Treino salão e cãopo. Meu sonho quando eucrece éser soldado

Fonte: Produção textual – carta de apresentação (2019)

 

Quadro 2 Transcrição da carta de apresentação desenvolvida por estudante do 4° ano do E.F.

1 Moro em um sitio pertode são Miguelzinho desde que naci. Tenho 11 anos de idade.

2 Gostode estudar nas

3 horas vagas gostode brincar, ler livros decomer, brincar naminha picina e em ârvores e ve

4 vídeo na intertet.

5 Minha familha é pequena meu pai minha mãe eu e minha irmã eu e ela brigamos portudo

6 até quando um de

7 nós tá longe mas mesmo assim nós somos irmão então um tenque aguenta outro.

8 Minha melhor amiga sexama Catarina ela é muito legal, masela vai mora emoutra

9 cidade sábado eu ajudei ela a faserasmala daí fiquei triste chorei mas vou visitala

Fonte: Produção textual – carta de apresentação (2019)

 

As produções textuais do corpus evidenciam dificuldades relacionadas à segmentação de palavras no momento de escrita, resultando no fenômeno da hipossegmentação. Dessa forma, visando observar as distintas estratégias realizadas pelos estudantes durante o registro gráfico, destacamos nesse estudo as ocorrências de hipossegmentação presentes nas duas produções textuais apresentadas e suas motivações e, na sequência, faremos uma análise e discussão dos dados gerados.

Destacamos que as reflexões e resultados apresentados advém de uma pesquisa situada no âmbito da Linguística Aplicada, sob o paradigma qualitativo e de cunho interpretativista, uma vez que nossa ação se volta ao estudo de problemas relacionados ao uso da linguagem e pelo fato de considerarmos o contexto em que as dificuldades ocorrem.

 

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

 

Considerando o objetivo do nosso estudo, pautamos a descrição e análise dos dados no terceiro grupo de problemas de escrita proposto por Oliveira (2005), que se refere à violação na escrita de sequências de palavras, ou seja, aos fenômenos de hipossegmentação e hipersegmentação. Identificamos nas produções textuais o fenômeno de hipossegmentação, conceituado por Cunha e Miranda (2009) como o fenômeno que tem por característica a ausência de espaço entre uma palavra e outra, ou seja, é a “falta de espaço entre fronteiras vocabulares” (CUNHA; MIRANDA, 2009, p. 1257).

Oliveira (2005, p. 49-53) categoriza os problemas de escrita em três grupos: grupo 1 (G1): Problemas que violam a própria natureza de uma escrita alfabética, o qual subdivide-se em G1A – Escrita pré-alfabética, G1B – Escrita alfabética com correspondência trocada por semelhança de traçado e G1C – Escrita alfabética com correspondência trocada pela mudança de sons. O grupo 2 (G2) relaciona-se aos problemas de natureza fonético-fonológica, dialetológica e da representação arbitrária do sistema ortográfico, tendo como subcategorias G2A – Violações das relações biunívocas entre os sons e os grafemas, G2B – Violações das regras invariantes que controlam a representação de alguns sons, G2C – Violações da relação entre os sons e os grafemas por interferência das características estruturais do dialeto do aprendiz e G2D – Violação de formas dicionarizadas. Por fim, o grupo 3 (G3) refere-se aos casos em que a ortografia exige o controle de fatores que ultrapassam a relação entre sons e letra, assim, divide-se em G3A – Violação na escrita de sequências de palavras e G3B – Outros casos.

Apresentamos a seguir as ocorrências de junção indevida dos vocábulos identificadas no texto A, transcrito no Quadro 1, e no texto B, transcrito no Quadro 2.

 

Quadro 3 Registros de hipossegmentação presentes no texto A

DESVIO ORTOGRÁFICO

ESCRITA ORTOGRÁFICA

comeus

decasa

muintode

sechama

agente

porcausa

demecher

umpoco

sechamam

comeu

meprovoca

eucrece

éser

com meus

de casa

muito de

se chama

a gente

por causa

de mexer

um pouco

se chamam

como eu

me provoca

eu crescer

é ser

Fonte: Dados levantados na produção escrita de estudante do 4° Ano E.F (2019)

 

No texto A, foram registradas 16 ocorrências relacionadas ao fenômeno de hipossegmentação. O desvio comeus (com meus) foi registrado três vezes na produção, enquanto o desvio agente (a gente) foi registrado duas vezes pelo estudante em sua produção textual.

Destacamos no quadro 4, a seguir, os desvios ortográficos identificados na produção textual B.

 

Quadro 4 Registros de hipossegmentação presentes no texto B

DESVIO ORTOGRÁFICO

ESCRITA ORTOGRÁFICA

pertode

gostode

decomer

naminha

portudo

tenque

sexama

masela

emoutra

faserasmalas

visitala

perto de

gosto de

de comer

na minha

por tudo

tem que

se chama

mas ela

em outra

fazer as malas

visitá-la

Fonte: Dados levantados na produção escrita de estudante do 4° Ano E.F (2019)

 

Por sua vez, no texto B foram identificadas 12 ocorrências relacionadas ao fenômeno de juntura indevida de palavras. O desvio gostode (gosto de) foi registrado duas vezes pelo estudante em sua produção textual.

Os desvios ortográficos identificados nas duas produções textuais evidenciam a dificuldade dos estudantes em relação à escrita de sequências de palavras, visto que o fenômeno de juntura intervocabular, ou seja, no qual as palavras aparecem unidas e marcadas em alguns momentos apenas pela entoação devido às características da fala (CAGLIARI, 2006) está presente em 72% dos textos analisados do referido grupo.

As incidências referentes a não separação dos vocábulos no momento de escrita já eram aguardadas, visto que nessa etapa de escolarização os alunos tendem a utilizar a fala como pista para a escrita. Assim, os problemas desse fenômeno se referem a situações em que a “partição da fala não corresponde à partição da escrita” (OLIVEIRA, 2005, p. 53).

Em relação aos desvios oriundos do processo de hipossegmentação presentes no texto A, identificamos as seguintes ocorrências relacionadas à combinação de palavra gramatical com palavra fonológica, sendo decasa (de casa), sechama (se chama), agente (a gente), porcausa (por causa), demecher (de mexer), umpoco (um pouco), sechamam (se chamam), comeu (como eu), meprovoca (me provoca) e eucrece (eu crescer).

Nos registros gráficos sechama (se chama), sechamam (se chamam) e meprovoca (me provoca), identificamos os pronomes pessoais oblíquo átonos “se” e “me” unidos ao verbo gostar e ao verbo provocar. Já na ocorrência eucrece (eu crescer), o pronome pessoal une-se ao verbo crescer; no registro crece (crescer), identificamos, ainda, o desvio ortográfico oriundo da representação da sibilante, na qual a fricativa alveolar surda [s] no interior de palavra deveria ser grafada, devido à convenção ortográfica, pelo dígrafo sc, porém, na ocorrência ocorre o apagamento do dígrafo, sendo grafado apenas o grafema c.

Já em decasa (de casa) e demecher (de mexer), observamos a juntura da preposição “de” ao substantivo feminino casa, no primeiro caso, e ao verbo mexer, no segundo caso. Além disso, identificamos no registro mecher (mexer) a representação indevida da fricativa alveopalatal surda [ʃ] em posição intervocálica, na qual o segmento consonantal foi representado pelo dígrafo ch, quando deveria ser notado ortograficamente pelo grafema x. Por sua vez, em porcausa (por causa), identificamos a juntura da preposição, nesse caso “por”, ao substantivo feminino causa.

Nas ocorrências agente (a gente) e umpoco (um pouco), identificamos a união do artigo definido “a” ao substantivo feminino gente e do artigo indefinido “um” ao substantivo masculino pouco, no qual é possível observarmos no desvio poco (pouco) o processo de monotongação do ditongo oral decrescente [ow]. Além disso, na notação gráfica de “agente” com o intuito de registro de “a gente”, podemos observar o desvio ortográfico a partir da sensibilidade ligada aos elementos, uma vez que a estrutura “a gente” origina-se nas práticas orais de enunciação; dessa forma, “a gente” se remete à primeira pessoa do plural, ou seja, à locução pronominal nós, enquanto “agente” relaciona-se ao substantivo masculino que designa aquele que promove a ação, como agente de trânsito, constituindo, portanto, uma homonímia entre as estruturas.

Além disso, identificamos o desvio muintode (muito de), no qual o advérbio de intensidade muito une-se à preposição “de”. No registro de muinto (muito), podemos observar a representação indevida do ditongo nasal decrescente [e͂j], representada no desvio ortográfico pelo acréscimo do grafema n, correspondente da consoante nasal alveolar sonora [n]. É possível verificarmos que o estudante apresenta dúvidas em relação ao registro do processo de nasalização, visto que em sua produção textual também identificamos a ocorrência cãopo (campo), evidenciando as hipóteses de grafia realizadas pelo escrevente durante a notação gráfica dos ditongos nasais, que se realiza ortograficamente de forma irregular ora por meio do acento gráfico til, ora por meio do registro do grafema n e/ou do grafema m.

Ao observarmos as ocorrências ortográficas motivadas pela juntura de palavra gramatical e palavra fonológica, foi possível verificar que em tais registros gráficos, os clíticos foram interpretados pelos estudantes como sílabas pretônicas das palavras a serem registradas em suas produções textuais.

 Tratando-se da associação de palavra gramatical a outra palavra gramatical, identificamos as ocorrências comeus (com meus) e comeu (como eu). Em comeus a preposição “com” une-se ao pronome possessivo de terceira pessoa do plural “meus”, dando origem à locução “com meus”; entretanto, a locução acaba sendo registrada em um único segmento pelo estudante devido ao processo de assimilação da consoante nasal bilabial sonora [m] presente na preposição e no pronome possessivo.

Já em comeu (como eu), observamos a juntura da conjunção “como”, palavra gramatical, ao pronome pessoal de primeira pessoa do singular – eu –, também palavra gramatical. O escrevente ao realizar a supressão do vogal média-alta posterior [o] acaba registrando a forma verbal da terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do modo indicativo do verbo comer, quando pretendia realizar o registro da locução “como eu”.

Por fim, encontramos a combinação de palavra fonológica com outra palavra fonológica. Em éser (é ser), observamos a locução verbal composta pelo verbo ser conjugado na terceira pessoa do singular do presente do modo indicativo – é –, associada à sua forma no infinitivo – ser. Não identificamos na produção textual A desvios ortográficos decorrentes da combinação de palavra fonológica à palavra gramatical.

Por sua vez, no texto B encontramos desvios ortográficos por hipossegmentação devido à juntura de palavra gramatical à palavra fonológica, como em decomer (de comer) e sexama (se chama). Na primeira ocorrência, a preposição “de” constitui um único segmento ao ser unida ao verbo comer; já em sexama, o pronome oblíquo átono “se” une-se ao verbo chamar. Assim, como na ocorrência demecher (de mexer) presente na produção A, no registro xama (chama) observamos a representação indevida da fricativa alveopalatal surda [ʃ], que de acordo com a convenção ortográfica deve ser representada pelo dígrafo ch, pois o segmento consonantal encontra-se em coda inicial, ou seja, no início da palavra.

Nas ocorrências gostode (gosto de), tenque (tem que) e visitala (visitá-la), identificamos os casos de juntura de palavra fonológica à palavra gramatical. Em gostode, o verbo gostar conjugado na primeira pessoa do singular no presente do modo indicativo – gosto –, se encontra juntamente da preposição “de”. Já em tenque (tem que), verificamos o verbo ter conjugado na terceira pessoa do singular no presente do modo indicativo associado ao pronome relativo que; a construção “tem que” é considerada coloquial[4] e, neste caso, o pronome relativo assume o papel de preposição acidental.

Observamos em visitala (visitá-la), o verbo visitar acompanhado do pronome oblíquo “a”, que assume a forma de “la” devido às orientações de colocação pronominal que estabelecem que, em posição enclítica diante de verbos terminados em -r, os pronomes oblíquos transformam-se em “la, lo, las, los”; dessa forma, o pronome ao substituir um termo da oração, deve se unir à forma verbal por meio do hífen e ser acentuado, visitá-la.

A presença de tal notação gráfica na produção textual de um estudante do 4° ano nos chama a atenção, visto que o conteúdo de colocação pronominal não pertence à grade curricular dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental; diante do registro dessa estrutura, é possível notar a atenção do escrevente com relação às estruturas próprias da modalidade escrita, tendo em vista que a colocação pronominal enclítica é característica de enunciados escritos, sendo pouco empregada na fala.

Já nos registros pertode (perto de), naminha (na minha), portudo (por tudo), masela (mas ela) e emoutra (em outra), verificamos o desvio ortográfico oriundo da juntura de palavra gramatical à outra palavra também gramatical.

Nas ocorrências naminha (na minha), portudo (por tudo) e emoutra (em outra), identificamos a juntura das preposições “na”, “por” e “em” ao pronome possessivo feminino – minha –, e aos pronomes indefinidos – tudo e outra –, respectivamente. Em pertode (perto de), o advérbio de lugar une-se a preposição “de”; enquanto, na ocorrência masela (mas ela), a conjunção adversativa une-se ao pronome pessoal de terceira pessoa do singular – ela.

Por fim, na ocorrência faserasmalas (fazer as malas) verificamos a juntura de duas palavras fonológicas, o verbo fazer e o substantivo masculino malas, por meio da palavra gramatical, artigo “as”. Observamos que a presença do clítico “as” entre as palavras fonológicas favoreceu o processo de hipossegmentação, visto que a junção dos vocábulos em um único segmento possibilitou o contínuo do ritmo prosódico da fala, evidenciando a transposição da fala do estudante para a sua produção escrita.

Não houve registros de desvios ortográficos por hipossegmentação motivados pela associação de palavra fonológica a outra palavra fonológica na produção textual B.

As ocorrências identificadas nas produções textuais, A e B, demonstram que os escreventes apresentam desvios ortográficos motivados pelo fenômeno de hipossegmentação ao grafarem itens gramaticais como a classe dos artigos, preposições, pronomes e conjunções, ou seja, quando necessitar registrar os clíticos.

            Uma característica comum ao grupo dos clíticos é a ausência de independência prosódica, assim, unem-se a uma palavra adjacente, conhecida como hospedeira (BISOL, 2000), favorecendo o fenômeno de hipossegmentação, como foi possível observarmos nas ocorrências ortográficas identificadas nas produções textuais presentes em nosso corpus.

Vejamos, a seguir, os desvios ortográficos a partir da classe dos clíticos presentes nas produções textuais A e B, que apresentaram maior incidência de juntura intervocabular.

 

Gráfico 1 Classes gramaticais envolvidas no processo de juntura intervocabular

Fonte: Dados levantados nas produções escritas de estudantes do 4° Ano E.F (2019)

                                                                                                                

Constatamos nos dados analisados, que os estudantes possuem dificuldade em reconhecer os elementos clíticos – o que favorece os desvios relacionados à segmentação das palavras –, especialmente os pertencentes à classe gramatical dos pronomes, entre eles: pronomes pessoais, possessivos e oblíquos, representando percentualmente 45% das incidências de hipossegmentação computadas.

Os resultados obtidos nos possibilitam verificar que o fenômeno da hipossegmentação se faz presente nos registros gráficos dos alunos, oriundos, especialmente, da associação da fala à escrita, devido à estrutura prosódica da língua. Dessa forma, os estudantes, apoiados na oralidade e não compreendendo totalmente as particularidades do nosso sistema de escrita e ao se depararem com a necessidade de dividir a pauta sonora em partes menores, testam diferentes possibilidades para delimitar a palavra escrita.

 Os dados revelam informações das práticas letradas, nas quais o aluno ativa os conhecimentos que possui e os utiliza na tentativa de registro, criando e reelaborando constantemente suas próprias hipóteses linguísticas.

            Destacamos, por fim, que os dados obtidos nos recortes presentes nesse estudo indicam, além da presença do fenômeno de juntura intervocabular, outras ocorrências relacionadas à transposição da fala para a escrita, como os desvios piqueno (pequeno) e minino (menino), presentes, respectivamente, na linha 7 e na linha 10 da produção textual A; a ocorrência familha (família), presente na linha 5 da produção textual B e; o registro de daí como recurso de coesão textual em ambas as produções.

Tais ocorrências também se fizeram presentes nas demais produções textuais pertencentes ao nosso corpus geral, nas quais foi possível observarmos ainda o uso indevido de letras maiúsculas e minúsculas, ausência de sinais pontuação e a falta e/ou o emprego indevido dos acentos gráficos; além de diversos problemas de ordem semântica e sintática.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Os desvios ortográficos registrados pelos estudantes demonstram as inúmeras dificuldades dos aprendizes durante a aquisição do registro do código escrito, as quais compreendem questões sobre a transposição das unidades sonoras presentes na fala para suas correspondentes gráficas na modalidade escrita da língua.

Por meio das ocorrências ortográficas identificadas nas produções A e B, podemos constatar que os desvios oriundos do processo de hipossegmentação são resultantes do trânsito de práticas sociais orais para práticas sistematizadas de escrita, refletindo as possibilidades do sistema linguístico e as hipóteses sobre o limite e segmentação de palavras pelos estudantes durante o processo de aquisição da escrita. Desse modo, durante o momento de registro gráfico os alunos pautam-se em diversas “pistas” linguísticas, por exemplo, a entonação que pronunciam as palavras, para separar os segmentos em grupos de acordo com a tonicidade das sílabas; o que os leva a transgressões, visto que na dimensão escrita da língua os segmentos gráficos seguem uma organização distinta da presente na fala.

A hipossegmentação é, portanto, resultante do contingente sonoro, haja vista que os estudantes tendem a apoiar sua escrita na oralidade e, como na fala não há separação, isolada, de palavras, mas sim blocos com tempo variado devido ao ritmo prosódico, durante o processo de escrita, muitas vezes, há uma percepção indevida da segmentação de palavras. Nota-se que o fenômeno da hipossegmentação está atrelado aos clíticos, que por não terem uma dependência prosódica, unem-se a uma palavra adjacente, favorecendo, dessa forma, o registro das segmentações não convencionais.

O professor tem papel ativo ao longo do processo de alfabetização, visto que ao analisar constantemente as produções de seus alunos, estará atento aos desvios ortográficos e, assim, poderá vê-los como indicativo do percurso que o estudante vem trilhando, pois estará diante da manipulação da criança sobre a linguagem. Além disso, a análise dos registros ortográficos permite o planejamento de atividades de ensino objetivas e sistêmicas, transformando e desenvolvendo as habilidades linguísticas e de linguagem dos estudantes.

Identificamos em nosso corpus ocorrências ortográficas relacionadas às arbitrariedades da escrita alfabética, violações na relação entre sons e grafemas, hipercorreção, dentre desvios de outras naturezas.

Dessa forma, compreende-se que as escolas devem ensinar o português e a estrutura gramatical da língua, bem como a importância dela para a existência de uma linguagem/comunicação na sociedade, pois embora haja particularidades decorrentes das características dos falantes e suas variedades dialetais, a convenção orto-gramatical permite aos falantes de uma dada língua a interação comunicativa. Ainda, é preciso destacar aos estudantes a importância da norma-padrão da língua, já que esta possui prestígio e é uma forma de promoção social.

A partir do estudo realizado, é necessário um olhar compreensivo sobre os registros dos estudantes, uma vez que a relação entre a fala e a escrita é algo complexo, pois a escrita não representa completamente os aspectos interlocutórios presentes na fala.

Por fim, enfatiza-se a necessidade de uma pedagogia sensível e humana, que não esteja orientada apenas para os aspectos gramaticais/estruturais, mas que leve os estudantes a conhecer e reconhecer o funcionamento, a estrutura e os usos da língua, tendo em vista a heterogeneidade e função social. Sendo assim, é crucial refletir sobre a relação existente entre as áreas da Linguística e da Educação, repensando, dessa maneira, sobre o ensino dos conteúdos gramaticais como uma prática escolar de letramento vinculado à inclusão e à ascensão social, ao mesmo tempo em que se soma à prática docente os conhecimentos linguísticos já adquiridos pelos aprendizes.

 

6 REFERÊNCIAS

 

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PESTANA, Fernando. A gramática para concursos públicos. 3. ed. Rio de Janeiro: Método, 2017.


 

Title

Unconventional segmentation (hyposegmentation) in written productions of students of the 4th year of elementary school.

 

Abstract

This article presents data related to unconventional word segmentation, specifically hyposegmentation, in written productions of elementary school. The objective is to analyze the phenomenon of hyposegmentation (inappropriate word union) and the possible motivations for its realization in the student’s textual productions. The reflections are based on authors in the area of phonetics, phonology, and linguistic variation such as Bisol (2000, 2005), Bortoni-Ricardo (2005), Busse (2013), Cagliari (2006, 2009), Mollica (2004) e Oliveira (2005). Regarding the methodological procedures, the main point of this study presupposes the qualitative interpretative processes and the results were generated from a methodological perspective supported by Applied Linguistics. The research carried out shows that the orthographic deviations presents in the students productions are the result of the transition from oral social practices to systematic writing practices, thus show the hypotheses constructed by students during the development process of the written form of the Portuguese language. The data reiterates the necessity of systematic and permanent work with the phonographic aspects of the language, and the teacher need to analyze the textual productions of the students to testify of their possible doubts, and consider the deviations as an integral part of the learning process.

 

Keywords

Speech; Writing; Unconventional segmentation.

 

 

Recebido em: 14/01/2022.

Aceito em: 31/05/2022.



[1]Na teoria psicogenética, o erro (chamado por nós de ‘desvio’) ocupa importante lugar; é considerado construtivo à medida que pode revelar a lógica nas hipóteses formuladas pelos aprendizes para a resolução de problemas novos. Essa lógica, na maioria das vezes diferente daquela utilizada pelo adulto, é capaz de expor o tipo de pensamento utilizado pela criança quando ela produz suas primeiras formas escritas” (MIRANDA; MATZENAUER, 2010, p. 366, grifos nossos).

[2] Utilizamos o termo “não convencionais” para designar grafias que se distanciam do preconizado pelas convenções gramaticais.

[3] Os clíticos embora assemelhem-se a palavras, somente possuem significado quando acompanham outro termo dentro do um enunciado pois dependem estruturalmente de uma palavra vizinha. Em português, são clíticos os pronomes átonos (se, me, te, nos, o, a, lhe), os artigos (o, a, um, uma), as preposições (de, com, sem, a, p(a)ra), algumas conjunções (e, mas, ou, se) e pronomes/conjunções (que) (BISOL, 2005).

[4] Conforme Pestana (2017), há uma diferença entre ter de e ter que. A construção “Você tem que estudar.” indica imposição ou necessidade, e o que é uma preposição acidental. Segundo a maioria dos gramáticos, como Manoel P. Ribeiro e Napoleão M. de Almeida, a forma culta é “Você tem de estudar.”, em que tem de estudar é uma locução verbal culta, e tem que estudar, coloquial.