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Travessias, Cascavel, v. 16, n. 2, p. 128-137, maio/ago. 2022.

DOI: https://dx.doi.org/10.48075/rt.v16i2.28799

 

O PROFESSOR DE MATEMÁTICA E A ARTISTA DE CIRCO

 

Adriana da Costa Telesadriana_c_teles@hotmail.com

Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, São Paulo, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-3032-3463

 

 

Entrou na sala. Os livros na mão. O rosto ainda jovem, mas sério. De poucos amigos. Depositou o material sobre a mesa. A lousa (retangular) atrás de si. Os alunos (quase todos rapazes) começaram a acomodarem-se quietos. Respeitosos. As carteiras quase arrumadas formando desenhos em meio a corredores estreitos e ligeiramente tortuosos. O barulho discreto do ar condicionado. As linhas retas das paredes. As janelas (quadradas) que apareciam ligeiramente por trás das persianas (beges) entreabertas. Passou os olhos pela sala. Os vários tons da cor azul dos jeans. Algumas camisas de tons sóbrios. Camisetas de cores desmaiadas para combinar com a época do ano e com as folhas amareladas, caídas nos jardins do campus. Começou. Em instantes, ele falava sobre os fractais. Seu poder e beleza profundos. Infinitos. Ia agora esquecido do todo. Mergulhado nos padrões intermináveis. De vez em quando olhava para a porta. Falava sobre a autossimilaridade. Princípio subjacente a quase todas as formas no mundo natural.  O princípio matemático. Foi quando percebeu a porta abrir-se tão discreta, que era quase imperceptível. E ela entrou. “Licença...” Ele assentiu com a cabeça. Observou que ela vestia amarelo. Não o amarelo queimado das folhas caídas no gramado. E o amarelo tem um efeito psíquico. Assim como azul... Observou-a buscar um lugar para si. Desviando dos rapazes da última fileira. O silêncio era quase material. Sonoro. Por mais estranho que parecesse. Ela sentou-se. Ele olhou para ela. E os seus olhos se cruzaram. Os dela se abaixaram. Em direção ao livro. Olhou discretamente para o lado. Era para buscar o número da página em que estavam. Ele então tentou renovar sua concentração. Falou sobre as árvores. Mais propriamente sobre os seus galhos, que estavam, então, quase nus. As folhas (amarelo-queimadas) quase todas no chão. Os galhos que se bifurcam várias vezes, repetindo o processo em escalas menores. Labirinto infinito. Assim como ocorre em nossos pulmões. Ramificações contínuas. Diminutas. Até o imperceptível. E um dia ele assume outro padrão. Indelével. Era a união cósmica. Soma zero. Era complexo. Misterioso. Olhou para a janela durante uma pausa e avistou os galhos entre as persianas por trás do vidro da janela. Quando voltou os olhos para a sala, ela o olhava com atenção. O amarelo de sua blusa. O azul profundo dos seus olhos. Os cabelos lisos em fios marrons infinitos sobre os ombros. O rosto ligeiramente pálido. Células e mais células organizadas de modo único. Era especial. Enigmático. Como as emoções e as sinapses. Talvez conversasse com ela depois da aula.

 

                                                                                                                

1 SINAPSES

Algo pensa em mim.  Se eu respiro e o sangue circula em meu corpo sem que eu perceba, por que seria diferente com o pensamento?

São padrões. Padrões invisíveis, movidos por sinapses, impulsos nervosos que passam de uma célula para outra em busca de respostas a sinais. Neurônios vizinhos em contato, impulsos nervosos vertidos em impulsos químicos.

É isso.

Padrão semelhante ao de outras reações químicas. Milagroso. Belíssimo.

Fechou os olhos. Puxou a respiração profundamente, imaginando teias imperceptíveis unindo-se em um abraço universal.

E lá estava ela.

Na sua cabeça.

Em meio a isso tudo.

Todo o tempo.

Antes e depois desses pensamentos, que se pensavam a si próprios.

Es Denkt in Mir.

Era Nietzsche quem lhe assoprava aos ouvidos em alemão.

E ele, então, lembrou-se dos olhos dela, que o arrastavam infinitos. Todo o tempo em que os avistava. O seu rosto emoldurado pelos fios dos cabelos que caiam incontáveis sobre os ombros. Marrons. Em contraste com a pele clara.

Como conciliar aquele sentimento cheio de desejo e ansiedade com as reações químicas? A questão era: onde ela se enquadrava nos padrões universais? No princípio da autossimilaridade? Sim. Ela trazia o caos. Ela era o caos. Dentro de sua serenidade quase imperturbável. Ela estava lá para lhe mostrar que o caos e a sua pessoa eram muito reais. E eles eram parte de um todo que se relacionava de maneira orgânica e loucamente apaixonante.

Era algo cheio de vigor.

Quase trágico.

Es Denkt in Mir.

Escutou, então, batidas na porta.

Fortes.

Decididas.

Uma, duas...

E elas interromperam os seus pensamentos.

Três, quatro...

Feito marteladas que o arrancavam, impiedosas, de algum lugar dentro de si. Abrindo um buraco para que saísse e fizesse um contato com o mundo.

“Entre!” Disse, aliviado por se afastar dela.

 

2 ENCONTRO

Colocou os livros um sobre o outro. Com cuidado. Os menores em cima. Sem pressa. Apanhou as canetas. Desligou o ar. Fechou as persianas. Olhou a sala. Os últimos dois alunos saíam. Combinavam algo para a tarde. Algum trabalho que deveriam fazer juntos. Encaminhou-se até a saída. Apagou a luz. Trancou a porta. Foi entregar a chave no saguão.

“Aqui está. Sala 3.” Disse entregando a chave para o senhor Antônio e apanhando a caneta para assinar o livro de devolução. Data. Hora. E assinatura. Olhou para o relógio. 09:55. Sim, ele usava um relógio. Mesmo tendo o do celular. É que ele lhe permitia ver o correr de cada segundo. E o segundo era fascinante. Pois era um instante que se deixava substituir por outro instante. Sendo que um não poderia conviver jamais com o outro. Substituíam-se de maneira misteriosa, já lembrara Aristóteles. Era um dos milagres que ele reivindicava acompanhar. Assinava o nome quando percebeu que alguém havia se aproximado. Apressou-se. Talvez quisessem apanhar uma chave ou conversar com o guarda. Mas ele ouviu, então, uma voz. De leve. E que lhe soou conhecida.

“Olá...”

Virou-se com a caneta ainda na mão. No ar.

“Olá.” Respondeu respirando lenta e doloridamente. Sim. Sentiu uma dor no fundo do peito. Feito uma agulhada cheia de adrenalina que a natureza lhe injetava de maneira singular. Fechou o livro. Estendeu-o ao senhor Antônio. “Obrigado.” Disse pensando em quantos segundos o seu ato teria levado. Porque há essa questão. O tempo corre em velocidade diferente, de acordo com a ocasião. E isso desafiava os ponteiros do seu relógio. Voltou-se para ela. Que jamais estivera assim tão próxima.  Era uma intimidade primeira. Avassaladora. Pensou de relance em Agostinho. E na sua reflexão sobre o tempo. O tempo presente. Só existia ele. Mas ele era impossível de ser apreendido em sua totalidade. E era uma pena. O fato era que a sua visão lhe fazia perceber que ele tinha um coração. Um órgão que inchava vermelho e pulsante. Tuntun. Tuntun. Tuntun. Cheio de música grave. Ritmo forte. E que inundava a si. Impondo o seu pulsar. Orientando a sua percepção. Barulhenta. Será que ela ouvia?

“O livro que você indicou no outro dia... Não encontrei na biblioteca e...”

“Ah! O estudo complementar. Sei...” Disse cruzando os braços, a pernas afastadas,  e olhando-a com preciosa atenção, certo de que a biblioteca possuía vários exemplares da obra.

            “Então, eu pensei se...” Ela lhe pediu, então, que ele lhe emprestasse o seu próprio exemplar para que ela fizesse uma cópia do capítulo 7. E, enquanto ela falava, ele viu que os seus olhos, além do azul que o fascinava, tinham uma parte de tonalidade mel (levemente amarronzada) bem próxima à pupila, e que irradiava veios quase imperceptíveis por toda a sua íris. Feito segundos fugidios que evaporam incansáveis. Ou sons graves que se diluíam em ondas pelo ar. Pássaros em formação que sumiam no horizonte. É... E percebeu que gostava da combinação. O azul com o marrom claro. Era mesmo perfeito. Era incrível, pensou submetendo-se a um todo que lhe pareceu subitamente desconhecido e profundamente adorável. Desafiador em sua delicadeza profunda. Era fascinante. E combinava com o ritmo das batidas do seu coração. Que eram agora mais suaves. Acostumadas ao azul e à sua doce combinação com o tom mel levemente amarronzado que tinha próximo às pupilas.

            “Vamos até a minha sala e pegamos o livro.” Disse decidido.

 

3 OS MISTÉRIOS DO SETES

Ele estava sentado em frente à sua escrivaninha. Calado. E era difícil estar assim. Tão quieto em si. Como se não tivesse o que fazer ou no que pensar. Olhou, então, para o livro. A capa verde. As letras pretas e grandes que a estampavam. E que, naquele momento, eram desenhos apenas. Apanhou-o. Apreciou o volume por alguns instantes. Sem pensar ou ver nada. Abriu no capítulo sete. Aquele que havia sugerido aos alunos que lessem. E olhou o número, que vinha escrito em arábico. E que era um símbolo inventado. O sete é escrito das mais inúmeras maneiras nos mais diversos sistemas numéricos que o homem pôde elaborar. E eles eram impossíveis de serem dimensionados. Ora, quantos sistemas numéricos o homem teria estabelecido desde os primórdios? Olhou de novo para o número que tinha à sua frente. Sete. O sete era um número natural que segue o seis e precede o oito. O quarto número primo, precedendo o onze. Lembrou-se do heptágono. Um polígono de sete lados. Das sete propriedades da matéria. Das sete virtudes humanas. E dos sete pecados capitais.  Das sete artes. Dos sete dias da semana. Das sete cores do arco-íris. Das sete notas musicais. Dos segredos escondidos a sete chaves. Dos sete mares e dos sete palmos de terra. E também dos sete sacramentos. Na Hidra de Lerna com as suas sete cabeças e que foi derrotada por Héracles. E também no filho de Adão e Eva. Sete: aquele que veio depois de Caim e Abel. O ancestral de todas as gerações dos justos. Mas ficou, então, em dúvida. Sete era Seth, na Bíblia. Ou não? E Sete seria uma tradução adequada de Seth? Ou seria apenas uma adaptação orientada pela semelhança? Deixou, então, o livro sobre a mesa. O pensamento desatrelado das folhas do papel. E pensou: quais seriam, afinal, os limites entre a invenção e a descoberta? Pensava nas verdades da ciência, na intuição e também nas crenças, nas sensações e nas superstições. E recostou na cadeira, que foi levemente para trás. Colocou as mãos na nuca. Relaxou o pescoço. Fechou os olhos. Os pensamentos nos mistérios do sete. Entregues ao seu infinito. Que o envolvia feito as sete cabeças monstruosas de Lerna e contra a qual ele não estava disposto a lutar, agora. Sete. Simplesmente sete. Para sempre sete.

 

4 JANTAR (I)

Ele arrumou a mesa. Sobre a toalha pretensamente lisa (ela tinha fragmentos de listras descontínuas e infinitas) colocou as taças de vinho tinto e as de água. Eram quatro. Duas e duas. As maiores atrás e ligeiramente à direita. Em diagonal. Arranjo quase milimétrico. Queria que tudo estivesse impecável. O vermelho escuro combinaria com a toalha bege e acolheria os raios infinitos da luz pendente sobre a mesa. A água refletiria o vermelho, mesmo que ela não percebesse. E tudo seria assim. Padrão retilíneo feito raios e flechas. Banhados pelo vermelho profundo. De sangue e de paixão. Havia escolhido carne. Prepararia na hora. Esperava que ela gostasse dela mal passada. As cerdas (retas) ficariam, então, muito aparentes. Vermelhas. Sangrentas. E a salada? As verduras romperiam com esse conjunto e instaurariam outro padrão. Arredondado e cheio de curvas. Verdes. Os tomates-cereja fariam a junção. Uniriam o arredondado e o retilíneo. Vermelho. Mas não vermelho profundo. Vermelho vivo. Da carne crua. Tomara que ela gostasse da carne mal passada, pensou redundante. Foi quando ouviu a campainha. Ondas sonoras que atingiam em cheio um coração pulsante de sangue vermelho. Foi até a porta. E quando a abriu, viu que ela vestia amarelo. Os olhos muito azuis. Era simplesmente perfeito.

 

5 JANTAR (2)

Ela não gostava da carne mal passada. Não tinha problema. Ele a faria do seu gosto. E, enquanto ele cozinhava e eles bebericam o vinho vermelho (que contrastava belamente com o amarelo do seu vestido), ela lhe disse que o que queria, mesmo, era ser artista.

“Se eu pudesse escolher, eu trabalharia no circo. No trapézio. Ou com lenços acrobáticos.”

“E o que faz na matemática?”

“Uma coisa não exclui outra. Adoro a matemática... Sabe aquela coisa: o mais incompreensível do universo é que ele é compreensível? Acho poético... Muito embora seja abstrato e complexo. Às vezes, eu penso em desistir, sabe?”

“Não! Não desista!” Ele falou com certa ênfase. Maior até do que pretendia. Isso porque o discurso foi espontâneo. Sem cálculo. E eles se olharam. E os olhos dela (que lhe pareceram de um azul mais escuro) o arrastaram para dentro de si. Em um encontro instantâneo e eterno ao mesmo tempo.

“Não vou desistir... Na verdade, estou completamente seduzida pelo princípio da autossimilaridade, sabe? Tem um apelo estético...”

“Sim! É belíssimo!” Ele concordou com o mais profundo vermelho do seu coração. O vermelho do vinho. Intenso. Pulsante. Alcoólico. Vermelho zonzo e inebriado. Quando, afinal, poderia beijá-la?

“Na verdade, eu tenho pintado...”

“O quê?” Perguntou entre confuso e surpreso.

“Pintura... Nankim... Aquarela... Tinta a óleo ainda não...”

“Mas você não queria ser artista de circo?”

“É que tudo se mistura. Sabe? Igual na matemática. Uma coisa se relaciona com a outra...e...” Ela pareceu pensativa.

“O quê...?” Ele buscou os seus olhos. Encantado. Sem vestígios da seriedade carrancuda da sala de aula. Leve. Outro.

“Quer que eu arrume a salada?” Ela perguntou, por fim.

“Sim!” Disse depois de instantes catalépticos. Abriu a geladeira e apanhou a verdura já lavada e os tomates. Ela se aproximou.

“Quer que eu acrescente cenouras?” Ela disse apontando para um conjunto de raízes, que descansavam sobre o balcão da cozinha. Ele havia esquecido de guardá-las na geladeira. “Eu posso ralar uma delas... Ou ainda cortá-la tipo palito para que a gente possa comê-los um a um. No limão e sal... Eu gosto, sabe? De mastigar essa estrutura... lenhosa... Você gosta...?” Ela se aproximou. E os seus olhos azuis o chamaram para dentro dela. E o jantar ficou para mais tarde. A carne seria requentada e teria um sabor inusitado e único.

 

6 JANTAR (3)

“Eu gosto..., sabe?”

“...?”

“De me sentir livre. E de ousar. Mesmo que no fundo, no fundo, eu me sinta presa... a algo maior... Algo que é impossível de ser apreendido... Por isso que eu gosto de morder as cenouras cortadas em palito. E de romper sua estrutura lenhosa com força... O gosto cru da raiz...”

Ele pensou na carne mal passada. Nas cerdas longas e intactas. Quase retilíneas. Banhadas pelo sangue e pela gordura. O bife grosso. Saboroso. Que agora estava sobre o fogão. Na cozinha. Dentro da frigideira. Frio. E cujo ponto perfeito era impossível de recuperar. Sentiu enorme prazer em saber que os seus planos estavam destruídos.

“É um pecado.” Ele conclui cheio de prazer.

“Sim...”

E descobriu, então, que a amava verdadeiramente. Era isso. Esse era o sentimento que havia buscado errando pela cidade em seus dias quase sempre tristes. E disse, então, cheio de entusiasmo.

“Vamos jantar?”

“Estou morrendo de fome!” Ela concordou entusiasmada. E eles se levantaram e foram ver o que dava para fazer com a comida abandonada na cozinha.

 

7 JANTAR (4)

“Por que o circo?” Ele perguntou cortando o bife grosso e mais bem passado do que costumava consumir. A faca e o garfo levando-o a experimentar uma sensação outra no corte. Provou. Estava boa. Mais do que o sabor do mal passado, pensou de relance, talvez gostasse mesmo da sensação que o ato de cortá-la lhe proporcionava. A faca indo e vindo teimosa. Tentando romper as cerdas molhadas de sangue e gordura. Assim era diferente. A resistência era outra. Seca e macia. De um macio quase sedoso. Teimoso e indefectível.

“Minha vó queria ir para o circo... Aí eu cresci pensando nisso.” Ela tomou um gole do vinho. A taça suspensa no ar. O vermelho por trás do vidro que refletia a luz de leve. Os braços apoiados nos cotovelos.

“...?” A expressão vinha acompanhada de um ligeiro franzir de sobrancelhas. Apanhou a própria taça. Era para apreciar as formas, arredondadas e irmãs, sob os raios da lâmpada. Da próxima vez que a recebesse, usaria luz de velas. O plasma da chama refletiria de maneira outra no vinho. Ficaria belíssimo.

“É... ela queria vestir aquelas roupas coladas no corpo e cheias de brilhos e penduricalhos... e trabalhar com cavalos. Sabe aquele número que a moça monta e fica cavalgando ao redor do picadeiro, as mãos soltas no ar... Então. Ela me dizia que se fosse livre – não que não fosse... – ela completou olhando-o de maneira tal a se fazer compreender – ela ia querer fazer isso. E viajar pelo país. Talvez pelas Américas. Ou mesmo pelo mundo. Dizia também que queria trabalhar com o mágico. Ser a moça que ele serrava, que fazia sumir..., enfim... a ajudante do mágico.”

“E ela morreu sem conseguir...” Ele concluiu quase interrogativo.

“Ela não morreu não! É aposentada.”

“Ah...”

“E você?”

“O que tem eu...?”

“Quem é você?”

“Eu sou apenas um sujeito solitário. Que adora o que faz. E talvez não soubesse fazer outra coisa para viver. E que nunca pensou em ir para o circo.” Completou entre provocativo e sério.

Ela riu gostosamente. E mostrou os dentes. Grandes e brancos. Os lábios carnudos na medida certa. E com pequenas (quase invisíveis) ruguinhas. Infinitas. Padrões perfeitos, interrompidos pela gargalhada ausente de cálculos. Quis fazê-la rir muitas vezes. Sempre. Teve um medo súbito de não conseguir e...

“O quê...?”

“...?”

“Você está olhando de um jeito estranho...”

“Eu sou estranho...” Disse com um meio sorriso. E ela riu de novo. E o azul dos seus olhos o puxou novamente para dentro de si e....

 

8 DE VOLTA

Colocou as chaves sobre a mesa. Viu, então, um guardanapo sujo em cima do vidro nu. E nele havia as digitais da noite. E elas eram vermelhas. Do sangue da carne. Do vinho. Do batom. Desamassou o papel branco para ver melhor as impressões. Sentou na cadeira dura de madeira. O papel quadrado estendido face a si. Os seus ângulos não eram mais regulares. O papel estava machucado do uso. Carcomido em duas beiradas. A superior direita e a esquerda. Uma mancha, vermelha e gordurosa no centro, tinha uma forma que ele não pode identificar. Um círculo losangular? Um hexágono arredondado? Não sabia. Ficou profundamente intrigado. Pegou um lápis e resolveu rabiscar (de leve) o entorno. Ver que forma, afinal, aquilo assumia. Quando ia tocar o guardanapo sujo com o grafite negro, desistiu. Resolveu então dobrá-lo ao meio. E colocar entre as folhas de um livro, feito uma flor que uma adolescente ganha do namorado.

 

9 DUAS VEZES DORIS

“Porque Doris?”

“Por causa da minha avó.”

“A que queria ser artista de circo.”

“Não. Não. A minha avó materna...  Por causa da Doris Day...”

“Ah... Encantador...”

“O quê? O nome...? Ou a música?”

“Me referia ao nome. Mas também serve para a música.”

Eles estavam no apartamento dele. Tomavam cerveja. A noite estava quente. E o dia havia sido fervilhante. O amarelo da bebida, que lhe lembrava o sol daquele dia, combinado ao sabor levemente  amargo, e à temperatura baixíssima do líquido (de doer a garganta), era cheio de rebeldia. Sim. Era assumir um padrão: o amarelo que fazia sofrer amargo. Mas, ao mesmo tempo, era desafiá-lo na temperatura gelada, que refresca as entranhas, cheia de desafio. E o prazer era mesmo imenso. Cheio de paz desalienante. Refletia sobre isso. E olhava para os seus incríveis olhos azuis. Os cabelos presos. A blusa branca, que fazia sua beleza enorme.

“O quê...?” Ela disse.

“Nada...”

Voltou-se para o celular. Para o youtube. Dream a little dream of me. Duas vezes Doris. Observou a cantora. Os cabelos loiros em um penteado perfeito. Irretocável. Voltou-se para o lado. A sua Doris... Ela era sua? Sentiu um aperto forte no coração. Olhou-a com cuidado. Os olhos que o arrancavam de si pareciam interrogativos. Alguns fios do penteado improvisado estavam soltos. E eles emolduravam displicentes o seu rosto. Os fios infinitos. E os lábios...? Tomou um gole longo. E a cerveja (amarga) desceu trincando de gelada pela sua garganta. Profundamente alcoólica. Embriagante. O copo na mão esquerda. Voltou-se mais uma vez aos seus lábios. Mas os seus olhos o atraíram. Sentiu-se ligeiramente perdido em meio a todos aqueles referenciais. A música. Duas vezes Doris. O penteado perfeito e os seus fios soltos. O loiro e o moreno. O calor intenso e a cerveja gelada. E os lábios... Como organizar tudo aquilo? Beijou-a – ao som da música. Um beijo longo. Muito. Muito longo. E aí o inusitado! O copo, que ele segurava na mão esquerda, deixou cair um pouco do líquido gelado em ambos. Mas estava quente, muito quente, e a sensação foi antes boa do que ruim. Riram. E a música, que terminava de acabar, foi imediatamente substituída por outra da mesma cantora. Duas vezes Doris. Ou três...? Eram duas. Dois referenciais. Perhaps, perhaps, perhaps... Eram os múltiplos. Sim! Os múltiplos. Levantaram-se para ajeitar as roupas ligeiramente molhadas. Os copos sobre a mesa de canto. O espaço livre para a dança que ele não sabia conduzir.

 

You won't admit you love me
And so how am I ever to know?

.

.

.

 

And I don't wanna wind up
Being parted, broken hearted

 

So if you really love me, say yes
But if you don't, dear, confess
.

.

.

Mas ela assumiu a cena. Não que soubesse dançar. Não sabia. Era apenas mais desenvolta. Ausente dos múltiplos. Mas, ao mesmo tempo, eles (os múltiplos...) a encantavam de maneira profunda. Alegre. Vibrante. E preenchiam o seu ser. De maneira única. E que, naquele momento, era para sempre. E eles selaram o final da música com um beijo apoteótico... E eterno.