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Travessias, Cascavel, v. 16, n. 2, p. 74-89, maio/ago. 2022.

DOI: https://dx.doi.org/10.48075/rt.v16i2.29203

 

A LITERATURA NOS TRILHOS DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA: TERRA DE CARUARU, DE JOSÉ CONDÉ

 

Ivson Bruno da Silvaivson_bruno@hotmail.com

Universidade Federal da Paraíba, UFPB, João Pessoa, Paraíba, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-6733-5548

 

Luciane Alves Santosluciane.ufpb@gmail.com

Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil; https://orcid.org/0000-0002-2353-4510

 

 

RESUMO: Este artigo tem o objetivo de analisar o romance Terra de Caruaru (publicado inicialmente em 1960), do escritor pernambucano José Condé, à luz dos vínculos mantidos entre a memória e a história. Os referenciais teóricos timbrados na análise, a partir de Sandra Jatahy Pesavento, Antonio Candido, Carlo Ginzburg, Jeanne Marie Gagnebin, Aleida Assmann, entre outros, propuseram refletir sobre as marcas existentes dentro do texto literário que viabilizam remeter à exterioridade, tendo como eixos norteadores da investigação os vieses mnemônicos e históricos. A narrativa condeana, ambientada na cidade de Caruaru, localizada na mesorregião do Agreste de Pernambuco, aponta para aspectos biográficos do autor, modelando a obra dialeticamente pelas reminiscências da sua infância, que aparecem fortemente na narrativa. Além disso, na simbiose entre o literário e o histórico, o texto constrói o horizonte da gênese municipal e seu cotidiano sociopolítico na década de 20 do século XX, amalgamado pelo coronelismo, pelo cangaço, pelos perfis humanos, pela cultura e paisagismo do interior nordestino e pelo anseio de progresso. Com um traço regional que lhe confere originalidade estética, o romance estrutura espaços e seres diegéticos que encontram modos de significação nos recursos extratextuais que os exteriorizam, atravessando os trilhos da memória e da história.

 

PALAVRAS-CHAVE: Literatura; História; Memória; José Condé.

 

 

1 ENTRE A LITERATURA, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA: JOSÉ CONDÉ

 

Julgam muitos críticos que a História ganharia em ser estudada à luz não dos fatos, mas da recriação dos fatos, efetuada pelos romancistas:

uma interpretação em profundidade, a verdade jacente sob as aparências.

(Quarta capa do livro Terra de Caruaru, de José Condé)

 

O futuro é a semente ansiando ser árvore; a memória é o arvoredo que rememora a semeadura. A lembrança representaria uma oportunidade de revisitar o passado e, em grande medida, compreender melhor o presente? Os fatos mnemônicos da vida são recolhidos por aqueles que testemunharam ou pesquisaram e reuniram os vestígios da história. Esta, quando coletada dos trilhos da memória, parece ter um toque de sensibilidade com vistas a ser perene. Seria desse intuito que, análogo à epígrafe que principia este artigo, estariam dispostos os romancistas: a profundez no olhar sobre a realidade pretérita, obtendo a recordação como um instrumento que auxilia na elaboração sensível da palavra e do seu valor estético.

É com base na sensibilidade da visão em torno do passado que Sandra Jatahy Pesavento ressalta que a experiência sensível de um outro tempo pode ser recuperada através dos rastros, por meio de fontes, testemunhos ou materiais que permitam a apreensão da forma, individual ou coletiva, de ser e de estar no mundo. Assim como a literatura foi a forma discursiva encontrada pelos humanos para presentificar o pretérito, existem outros instrumentos que, recuperados ou remetidos com sensibilidade e olhar atento, podem representar a cultura, as experiências ou os sentimentos dos indivíduos de um determinado tempo. Desse modo, é preciso saber observar o ontem, para tentar preencher as lacunas, os silêncios e os vazios que foram deixados (PESAVENTO, 2005).

Embora a intelectual brasileira se refira aos historiadores, suas reflexões podem se relacionar aos ficcionistas. Quando a literatura se presta ao serviço dialógico das estruturas socioculturais, ou seja, ao movimento dialético de influência mútua entre a estética e o campo social, através da sensibilidade do escritor, assentado no discurso literário, tem-se condições de se fazer alusões históricas, identificar possíveis aspirações e valores do passado. Evidentemente, como aponta Antonio Candido, em Literatura e sociedade, a arte conjectura algo muito mais amplo do que as vivências do artista, no entanto, quando este recorre aos componentes comuns da civilização, dificilmente deixa-se de incluir na sua explicação os elementos que ligam a ficção à vida (CANDIDO, 2000, p. 21).

Coexistindo nas camadas dessa linguagem comunicativa entre texto e contexto está a memória. O trabalho de elaboração literária pode ter como suporte as marcas mnemônicas de quem produziu a obra, amalgamado pelo processo multiforme e complexo da estética, que reelabora as visões sobre a realidade. Nessa esteira, o tratamento memorialístico é de responsabilidade daqueles que, em um trabalho de investigação ficcional, observam que a recordação influi a criação literária, apontando para as crenças e os costumes de um tempo, para a cultura e a história das sociedades e para a possibilidade de se percorrer caminhos biográficos.

Por conseguinte, tanto a memória quanto a história podem estar a serviço de um projeto de literatura, cada qual com seu modo particular de configuração. O literário, nesse caso, é o lugar de procedimentos e estruturas estéticas possíveis de serem atreladas ao coletivo. Nessa tessitura, a literatura recorre à memória para sua constituição, remetendo a alguma fonte da criação, que leva à representação do real, e, com isso, explora a história e as pegadas deixadas pelo tempo. O que leva a atestar que não se trata de entender a ficcionalização como a descrição de uma época ou realidade, mas sim com prováveis historicidades entrançadas na escrita: “os fatos que lhe deram às vezes origem perderam a realidade primitiva e adquiriram outra, graças à imaginação do artista” (COUTINHO, 1976, p. 9).

Consoante ao que empreende Carlo Ginzburg, em O fio e os rastros, há uma profusão de relações entre narrações históricas e narrações ficcionais, cuja representação da realidade é um ponto em comum. O historiador italiano pauta-se em diversos exemplos das duas áreas para advogar sobre suas ideias, como Marc Bloch e Walter Benjamin, que versam acerca dos vestígios do passado que validam o trabalho no âmbito da história e da literatura. No meio desse desafio de aproximar ou distanciar esses dois campos, exempli gratia, ante o ceticismo pós-moderno, endossa-se um argumento norteador: “a ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante. Essa trama imprevisível pode comprimir-se num nó ou num nome” (GINZBURG, 2007, p. 11).

Corroborando com essa assertiva, este é o fulcro sob o qual este artigo projeta-se: perceber no texto literário, além de suas configurações estéticas, as marcas que o vinculam aos planos memorialístico e histórico. Esse enfoque ganha sentido no romance Terra de Caruaru, do escritor pernambucano José Condé, publicado inicialmente em 1960, cuja circunvolução textual viabiliza alusões à história de Caruaru, cidade no Agreste de Pernambuco, e à vida do autor. Uma vez que essa literatura dá subsídio interpretativo e ilumina o olhar sobre uma realidade sociocultural e pretérita, vê-se os fios que mantêm unidos a topografia narrativa às trajetórias, acontecimentos e experiências de uma época.

O livro de Condé, antes do lançamento, teve trechos publicados no jornal Correio da Manhã, no Rio de Janeiro. Foi no Sudeste do país que o autor construiu sua carreira literária, despedindo-se de Caruaru, cidade de nascimento, ainda jovem, em 1930. Sua trajetória tem gênese com a publicação do primeiro conto, intitulado “Vingança”, no pequeno periódico Pra Você, quando ainda nem havia terminado o ginásio; posteriormente, já trabalhando na imprensa, publica o poema “A Feira de Caruaru”, na revista O Cruzeiro. Entre imersões no mundo editorial, finalização do curso de Direito e trabalhos na área de advocacia, é a literatura que ilumina sua vida. Contos, novelas e romances fazem parte do seu oásis ficcional, cuja obra Terra de Caruaru pode-se dizer ser sua opus magnum. Um livro com marcas históricas que, conforme destaca Renard Perez, oferta “a atmosfera e o modo de vida de uma cidade do interior pernambucano, com seus problemas de política local, seus casos pitorescos, seus dramas de amor, de vingança e de solidão” (PEREZ, 1973, p. 18-19).

À época, a obra foi bem recebida pela crítica, recebeu o prêmio Coelho Neto, em 1962, da Academia Brasileira de Letras, e variadas considerações em jornais:

 

O livro tem uma personagem principal, de certa maneira única: a cidade de Caruaru. [...] José Condé preferiu apresentá-la desde o surgimento e interromper-lhe a história no final da década dos 20: do pouso de tropeiros que desciam do sertão para o Recife ao momento em que a cidade pequena ameaçava agitar-se em busca de mais progresso. É a Caruaru da sua infância, imagem multifacética mas já de lembrança. Ao evocá-la o autor tomou naturalmente pela crônica, pelo registro respeitoso ao tempo cronológico, procurando reproduzir “o retrato de um tempo que não existe mais.” [...]

Terra de Caruaru é um romance brasileiro.

Obrigação imediata de limitar a conceituação, que tende a amplitudes incomensuráveis.

Romance brasileiro no sentido de que o ambiente e o povo que nele se agita é caracteristicamente nacional., ou seja, os problemas e as suas reações diante deles, embora universais, possuem a marca definidora de nossa nacionalidade (AMADO, 1961, p. 1-2).

 

O escritor James Amado, no Jornal do Commercio (RJ), destaca a marca principal do livro: a cidade de Caruaru. É ambientado nesse lugar, das origens ao pulo temporal às primeiras décadas do século XX, quando o cultivo do algodão definia a agroindústria regional, com vistas à modernização, que Condé delineia o enredo, refazendo itinerários de ruas, estabelecimentos e, principalmente, o cotidiano daquela sociedade com suas representações humanas. Uma obra que, como afirma o autor caruaruense, não é uma autobiografia, retratando indivíduos vivos ou mortos, mas a fixação de uma época através da criação (CONDÉ, 1960, p. 4).

O livro revela seu apego à terra natal, lugar vivaz em sua produção literária. Provavelmente, uma forma de revisitar, por meio da literatura, rastros mnemônicos da infância. Parece ter sido um modo de, como sublinha o pesquisador brasileiro José Veridiano dos Santos, “lidar com o conflito identitário que viveu a partir dos anos 1930, quando trocou a pacata cidade no interior pernambucano pela vida frenética na capital da República, em processo de modernização” (SANTOS, 2006, p. 74).

Sombreada por esse tom de conexão com a vida, a narrativa condeana percorre as veredas da memória e da história. Esta última, que reconstrói, de forma incompleta, o que já não existe mais, de vocação universal e de representação do passado; aquela, na fissura da dialética da lembrança e do esquecimento, de natureza plural, individual ou coletiva, um elo com o eterno presente (NORA, 1993, p. 9). Diante do romance, “o fator social é invocado para explicar a estrutura da obra e o seu teor de ideias, fornecendo elementos para determinar a sua validade e o seu efeito sobre nós” (CANDIDO, 2000, p. 15). Logo, dois sentidos caminham no livro de Condé: a recordação como uma via - subjetiva e investigativa - que clareia o nexo autor-obra, e; as vestes históricas que atravessam o discurso literário.

Ao passo que se direciona o olhar para esses aspectos, fica-se diante de reflexões que, do texto ao contexto, exploram as razões da formação do povo, os valores e crenças cultivados pelos indivíduos, as transições populacionais e econômicas dos espaços urbano-rurais e as relações humanas. Percorrendo esteticamente a cidade de Caruaru da década de 20, Condé revela um Brasil em transformação, com rupturas com velhos e vínculos com novos sistemas sociais. Recria-se uma pitoresca urbe moldurada pelo coronelismo, pelo cangaço, pelas divisões de classes, pelo paisagismo da caatinga, pela agroindústria do algodão, pelas tradições populares e transformações modernas. Um dos aspectos que singularizam sua narrativa é, como frisa Pessoa de Moraes (1967, p. 33), o poder de reconstruir ou recriar situações a partir da fonte vivencial.

Essa característica de Condé destaca-o no lume literário da década de 1960, época de um país mobilizado por tensões e diversidades político-culturais, como a inauguração de Brasília, a Ditadura Militar e a aurora da Contracultura, além de efervescências artísticas, a exemplo do Tropicalismo. O autor pernambucano liga-se, em certo sentido, à tendência do regional com espírito de universal, tão explorada por escritores consagrados, como Guimarães Rosa, cujas narrativas trazem a representação física, sociológica e psicológica da região mineira que espelha o painel de todo o Brasil.

Suspensa na ligação entre ficção, memória e história, a obra Terra de Caruaru, de Condé, talvez seja o que Jeanne Marie Gagnebin registra em seu livro Lembrar escrever esquecer, ao comentar sobre a escrita, o rastro mais contínuo dos homens, sobrevivente à morte do autor e instituída para transmitir a sua mensagem: “nutre a esperança de que deixa assim uma marca imortal, que inscreve um rastro duradouro no turbilhão das gerações sucessivas, como se seu texto fosse um derradeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio, contra a indiferença da morte” (GAGNEBIN, 2009, p. 112). Pelos liames diegéticos e recursos da exterioridade, este artigo consigna os valores estéticos e sociais coadunados na narrativa condeana, referenciando os espaços e os indivíduos em distintos horizontes existenciais.

 

2 PRIMEIRA PARTE DO ROMANCE: AS ORIGENS

Para seguir as rotas estéticas, memorialísticas e históricas no romance Terra de Caruaru, faz-se necessário percorrer os meandros narrativos ab initio. O “Prólogo” da obra, intitulado “Terra Plantada em Pedra”, destaca as origens de um lugar que, posteriormente, chamar-se-á Caruaru:

 

No começo: rancho para pernoite das boiadas vindas do sertão bruto – principalmente do Piauí e do Alto Moxotó – em demanda do litoral. Porque as águas abundantes e o verde pasto crescendo nas várzeas do Ipojuca faziam do sítio pouso obrigatório da vaqueirama em trânsito. Havia os índios, é verdade; também o insólito mistério da caatinga cinzenta espreitando o silêncio dos carrascais. Mas os pioneiros tinham forças para sobreviver.

Nascia nos campos o bredo caruru. Verde – ao atingir a altura de vinte centímetros – era comer saudável para o gado; seco, porém, virava veneno, que consumia em poucos dias a vida de um res.

Foi a origem.

Passava a estação das chuvas e o tempo se prolongava numa agonia de sol e mormaço. De quando em vez, uma rajada de vento investia contra a galharia, erguendo grossas nuvens de poeira amarela e quente. Um silêncio de fim de mundo descendo das serras e serrotes, envolvia o rancho onde os tangerinos, em redes armadas no avarandado, olhavam, atônitos, um céu de azul agressivo.

Então, o bredo murchou. Quando os bichos de quatro pés o mastigaram pela primeira vez, estava sendo escrita a página inicial da fundação de uma cidade (CONDÉ, 1968, p. 9).

 

A narrativa constrói-se inicialmente sob o horizonte semiárido, atravessado pelo rio Ipojuca, com um espaço propício ao alimento pecuário, das boiadas entre o sertão e a zona canavieira, e com os índios como os primeiros habitantes. É a presença do bredo caruru que modifica a espacialidade, comprometendo a vida dos animais e o cotidiano dos indivíduos que transitavam e que logo imprimiram um êxodo. Posteriormente, a mudança benéfica no clima e no pasto reformula o olhar do fazendeiro José Rodrigues de Jesus sobre o lugar, que, em 1771, “tomou a iniciativa de mandar construir uma igrejinha sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição” (CONDÉ, 1968, p. 11). Com o princípio de ocupação em torno da igreja e da casa-grande, os arruados sendo erigidos e o nascimento da feira semanal, aquele originário sítio Caruru transforma-se em terra de Caruaru. 

Sob o céu do Agreste, preside-se um enredo nas veredas da cosmogonia territorial, reveladora da fundação do espaço e instituída como um mito fundador. Sabe-se que existem várias acepções acerca do mythos, principalmente a atrelada à origem das coisas ou dos “acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje” (ELIADE, 1972, p. 12). Condicionado pela sua erudição sagrada, predominante nas sociedades arcaicas, em contraste da visão fabular da modernidade, e uma função social justificadora das crenças e comportamentos humanos, ele denota uma ‘história verdadeira’, uma realidade viva codificada pela sabedoria. Seu caráter cosmogônico destaca o começo de um mundo já existente que justifica e conta como este foi modificado (ELIADE, 1972, p. 20-23).

Com um modus operandi congênere, os mitos fundadores aludem à origem caracterizadora do mundo naturossocial. Essa perspectiva mítico-fundacional aparece no romance condeano a partir do bredo caruru, que passa a ser o princípio de tudo, naquela região do agreste pernambucano, uma planta do tempo primordial, in illo tempore, às margens do rio Ipojuca, sendo a gênese do espaço e definindo o sentido da toponímia e das primeiras expressões sociais do território. É um fragmento da iniciativa de povoação instituída pelo fazendeiro José Rodrigues de Jesus, que, ao construir a capela, insurge a fundação sob a égide do sagrado: “Estava plantada a cruz” (CONDÉ, 1968, p. 11).

Tencionando uma simbiose entre texto e contexto, a obra de Condé se irmana à história da cidade de Caruaru, do topônimo às origens populacionais. Mediante às especulações de Nelson Barbalho, em Caruaru: centenário da cidade, Caruru foi o nome dado à região pelos negros africanos que fugiram do litoral pernambucano para aquilombar no Agreste, habitado também por indígenas. O bredo que germinava no lugar ofendia os indivíduos e os animais, sendo chamado de ‘aru’ pelos índios Tapuias, ou seja, um alimento perigoso e maléfico. Espontaneamente, da contração dos vocábulos ‘caruru-aru’ originou a nominação da cidade ou, entre tantas possibilidades de nascença nominal, do fato do fazendeiro José Rodrigues de Jesus, homem de pouco letramento, grafar incorretamente o nome da fazenda, trocando letras, ‘fazenda Caroaru’ (BARBALHO, 2020, p. 71-77). Decerto, o orto onomástico da urbe remete ao bredo, que também ganha destaque no conto condeano.

Nessa instância histórica da cidade, a figura de José Rodrigues de Jesus é elementar: o fundador da povoação de Caruaru. Segundo Ígor Cardoso, em “Centenário da cidade de Caruaru, de Nelson Barbalho – Aditamentos e correções”, ao discorrer sobre alguns equívocos das pesquisas barbalhianas acerca do berço municipal, advoga que quem funda um lugar não necessariamente é o primeiro descobridor da terra, basta ter tomado uma iniciativa que viabilizasse o surgimento populacional. Foi isso que fez o fazendeiro Jesus, em meados de 1770, ao se transferir da Zona da Mata para viver na área do Agreste, onde não se tem certeza se já era conhecida como Caruru, e construir a capela em 1782, sob autorização bispal (CARDOSO, 2020, p. 15-29). É com essa edificação, com o fortalecimento do estabelecimento social na localidade, a criação de uma feira que passa a aumentar as trocas comerciais (suposta origem da atual e patrimonial Feira de Caruaru), que o motor do desenvolvimento socioeconômico liga e funda-se a cidade.

A resultante dessa digressão histórica é: o elo entre o romance condeano e o surgimento da cidade é inevitável, conferido pela sua motivação toponímica e pelo princípio de fundação. É também por esse diapasão que a ficção do autor demonstra o horizonte histórico a que se filia, vertida pelo fragmento do passado que ganha sentido estético, com a linguagem literária induzindo à travessia de uma realidade pretérita. Dessa maneira, a construção de sentido do texto – na forma e no conteúdo - se solidifica no âmbito do discurso ficcional, mas também se edifica pelos pormenores que atravessam as historicidades dos indivíduos e dos espaços.

Ainda na primeira parte do romance, o enredo dirige-se mais adiante nos fins do século XVIII, contando brevemente a história do Comandante João Teixeira de Carvalho, proprietário da fazenda Preguiça. Está-se diante de um episódio de vingança:

 

Certa manhã de junho de 1790 o vaqueiro Agripino foi bater à porta do Comandante João Teixeira de Carvalho, senhor de muitas terras, muito gado e escravos, lá para os lados da Preguiça:

– Venho pedir – a proteção de vosmecê pra mandar punir o assassino do meu filho Rosendo.

O rapaz tivera uma discussão à-toa com um vaqueiro do Coronel Leite, da Jurema, e horas mais tarde fora apunhalado pelas costas.

Comandante João Teixeira ouviu tudo e disse:

– Vá-se arranchando por aí; vou pensar no acontecido (CONDÉ, 1968, p. 12).

 

É a raiz de um sistema político baseado no coronelismo, que demonstra os rumos do domínio e da justiça naquele mundo Agreste. Após o pedido do vaqueiro, o Comandante João Teixeira de Carvalho manda seus homens aprisionar um dos jagunços do Coronel Leite, dono da Fazenda Jurema. O resultado disso é o ataque e a guerra entre os dois representantes do poder, depois do chefe da Preguiça enforcar o prisioneiro. Uma demonstração de que as relações políticas naquele lugar eram revestidas de papéis e funções ancoradas no lume hegemônico de forças, disputas e garantia da oligarquia à elaboração das leis e condutas coletivas. Em um pulo temporal da narrativa, o coronelismo se estenderá ao século XX, na década de 20, período em que se passa a segunda parte do romance, explorando a já formada cidade de Caruaru, com seu desenvolvimento econômico, urbano e social

 

3 SEGUNDA PARTE DO ROMANCE: A DÉCADA DE 20

No livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural, Aleida Assmann, ao citar a obra Shakespearean Negotiations, de Stephen Greenblat, comenta sobre a consideração do crítico americano em compreender o texto como um lugar de vestígios, circundado pela energia social, isto é, um espaço de conservação da vida após a morte do autor e a inexistência do contexto. A escrita é percebida como um medium da memória, assegurando uma imortalidade ao passado, aos rastros culturais ilegíveis pelo tempo; é o suporte da memória e uma forma de evitar o esquecimento. Entre tantas discussões, a intelectual alemã deixa evidente diversos usos e teorizações sobre a memória, destacando o papel da escrita como materialização mnemônica (ASSMANN, 2011).

Ao passo que se compreende o texto literário como lugar possível de se encontrar rastros da recordação, entende-se sua essência ficcional considerando que nela também estão entrelaçados os vestígios memorialísticos, percebidos pela relação direta com a vida, ou com o pulso da história. É nesse vínculo de influências que se estabelece o romance Terra de Caruaru, de José Condé, pois o enredo alude à cidade de Caruaru da década de 20, lugar onde o autor vivenciou a infância. Ele nasceu na principal urbe do Agreste pernambucano em 22 de outubro de 1917, no período do auge da crise epidêmica da Gripe Espanhola, que também lhe atacou.

De acordo com Renard Perez, uma das lembranças fortes da infância de Condé são os “jasmineiros no muro de casa (à rua da Matriz, 300 – construída pelo pai em 1925, quando enriqueceu, e em cujos fundos passa hoje a rua João Condé)” (PEREZ, 1973, p. 10). Essa referência torna-se essencial, pois, não à toa, no início da segunda parte do romance condeano, esse lugar ganha sentido estético:

 

A festa de inauguração de um desses palacetes da Rua da Matriz – exatamente o de número 300 – durou dois dias. Na primeira noite, antes de chegarem os convidados, a Nova Euturpe tocou diante da casa; depois os músicos entraram para tomar cerveja com peru assado. Houve banquete e baile. [...]

Era uma enorme casa em centro de jardim (sobre o muro floriam jasmineiros-do-cabo, que, ao anoitecer, perfumavam toda a rua) com muitas salas, inclusive uma de música, vários quartos, o santuário com figuras de santos pintadas a óleo na parede. Um artista viera do Recife para fixar, nas barras dos inúmeros cômodos, cenas e paisagens inspiradas nos motivos da região. [...]

O proprietário do palacete da Rua da Matriz, no entanto, começara a vida da maneira mais humilde: uma bodega de esquina, onde vendia bacalhau, querosene, bolachas de barrica, sabão marca Lavandeira, enxadas, carne-do-ceará. Enriqueceu com o algodão em poucos anos. Na sua época de pobreza, casado de novo, residia no Rosário, em casa de porta e janela. “Ah, quem dera um dia morar na Rua da Matriz” – dizia-lhe a mulher. E chegaram à casa de rico no ponto principal da cidade, o filho estudando medicina na Bahia

- O algodão é mãe generosa! (CONDÉ, 1968, p. 26-27).

 

Coexiste nas camadas do discurso literário a memória, adensado pelos aspectos caracterizados no enredo do romance (a Rua da Matriz, a casa número 300, os jasmineiros, o algodão etc.) que encontram na exterioridade uma contraparte, pelos aspectos que fizeram parte da vida do autor. Os espaços e as representações humanas ficcionais não são as mesmas, pelo princípio estético que carregam, no entanto, é possível fazer conexões entre o vivido e o literário. Além disso, a presença do algodão no texto condeano aparece em dois tons extratextuais: memorialístico, por viabilizar remeter aos investimentos da família Condé nesse setor produtivo, e; histórico, aludindo a uma época de Caruaru em que a produção algodoeira foi crucial para o desenvolvimento socioeconômico caruaruense e de Pernambuco no começo do século XX.

O algodão foi o que estruturou financeiramente a família Condé. Diferente da agroindústria açucareira, que exigia grandes propriedades e manufatura, a cotonicultura era simples, sem depender de materiais custosos, o que ajudou proprietários do algodão a enriquecerem e contribuir para o setor produtivo municipal e estadual. Além desse caráter do agronegócio, Caruaru dava passos com vistas à modernização: o desenvolvimento da tradicional Feira da cidade, o cinema, uma maior circulação ferroviária e automobilística, novas ruas, praças e sobrados, aumento nos serviços comerciais etc. Na cidade, em 1922, o Cine Theatro Rio Branco foi construído pela empresa de Alfredo Ramos e Anselmo Freire; posteriormente, adquirido e reformado pelo pai de Condé, alterando o nome para Cine Theatro Avenida. Não gratuitamente, o cinema é uma das principais atrações do romance condeano, que movimenta todo o cotidiano social da urbe na narrativa:

           

A melhor gente da cidade está no Cine Avenida para assistir à estreia da troupe “Chat-Noir”. Na primeira fila, o Juiz Taveira e sua gorda mulher, Dona Esmeralda, filha mais velha de um já falecido senhor de engenho do Cabo, absolutamente inconformada com o fato de ver o maridão tão competente e dos mais antigos magistrados do Estado, servindo numa cidade do interior. [...]

Nas demais filas – porque a impressão que se tem é de que toda a cidade veio ver a troupe – o tabelião Teixeirinha, de terno branco, engomado, sorrindo muito, não parando de cochichar ao ouvido do delegado, o Tenente Batista, que, por sua vez, está ao lado de Ariosto Ribas; o Prefeito Zica Soares (cara marcada pela varíola, dentadura postiça onde foram encravados dois molares de ouro) e Dona Serafina, mulherzinha acanhada sempre que tem de comparecer a qualquer reunião, pois trouxe do berço esse ar de medo (CONDÉ, 1968, p. 58).

 

A partir desse excerto, é possível observar que o cinema é frequentado por alguns personagens, importantes no enredo, como o Tenente Batista, Ariosto Ribas (filho do coronel Ulisses Ribas) e o Prefeito Zica Soares. A relação social entre/com eles demonstra a política do coronelismo presente na narrativa, porque, embora haja um poder executivo municipal, é o coronel a principal figura de liderança local, com influência em todos os setores. Esse é um aspecto do enredo que, na historiografia das cidades pernambucanas e do Brasil, balizou os relacionamentos políticos e econômicos ao longo da Primeira República.              

O coronelismo brasileiro foi a sobrevivência do poder privado ou monopólio, simbólico eleitoral do voto de cabresto e da violência autoritária, com vitalidade nas cidades do interior e com a influência de chefes locais e sua estrutura agrária, que ascendeu devido à rarefação dos órgãos públicos desde o século XIX. No entanto, é a partir da década de 20 do século XX que essa prática vai perdendo força, devido a alguns fatores, como as transformações modernas do mundo urbano-rural e a Revolução de 1930, que findou a República Velha, visando desfazer regimes e dar eficiência à administração municipal (LEAL, 2012, p. 43-85). O sistema coronelista não teve fim repentino, pois a prática, apesar de condenada em constituintes federais, estendeu-se veladamente por anos com bastante oportunismo e confrontos sociais, alcançando a modernidade nos subterrâneos das organizações políticas.

No romance condeano, o coronel Ulisses Ribas representa essa figura de poder local. No capítulo 2, intitulado “A cidade”, a personagem José Bispo passa a ser agredido publicamente a mando do coronel, pelo fato de já ter sido cabo eleitoral dele e, posteriormente, acusado de traição: “O fato é que passou a ser odiado pelo coronel. Odiado e perseguido. De vez em quando, recebia-se a notícia: ‘José Bispo levou outra surra de virola’” (CONDÉ, 1968, p. 37). Essas atitudes de violência contra indivíduos da cidade que não atendiam aos interesses de Ribas, com algum apoio popular, demonstravam a ação autoritária e as arbitrariedades que garantiam o fortalecimento do poder do coronel, sem que houvesse outras intervenções governamentais.

Um dos episódios de violência contra José Bispo chama a atenção de Chico Lima, diretor do jornal O Combate, que é contrário às atitudes do coronel e decide publicar um artigo no semanário contra o chefe local:

 

“... Não sabemos de povo mais hospitaleiro do que o desta progressista cidade. Povo bom e ordeiro, honra da terra pernambucana. Por isso mesmo, protestamos contra atos de selvageria, sobretudo quando atingem um cidadão honesto e pacato. Que dirá o país ao tomar conhecimento que em Caruaru...”

Gonzaga larga o jornal:

- Chico Lima está procurando sarna para se coçar. Não sabe com quem está se metendo. Coronel Ribas não é de aguentar desaforos e ficar calado.

- Que é que está dizendo, Gonzaga? – pergunta Paula, já vestida para a missa.

- O Combate traz um artigo violento contra o coronel. Não cita o nome, mas dá no mesmo (CONDÉ, 1968, p. 70).

 

Este é um momento que aclara o papel da imprensa e das iniciais insatisfações contra aquele sistema coronelista. O jornal é o principal veículo de comunicação e publicidade de Caruaru. A atitude de Chico Lima com a publicação do artigo afronta o coronel e ameaça a posição social e política que ele ocupa, justamente por correr o risco de influenciar a percepção da população. Essa reação também deixa claro o poder do chefe local diante das pessoas, que aludem a uma possível vingança. E, ainda que o destinatário da crítica não tenha sido diretamente nominado no jornal, na cidade sabiam a quem o artigo se referia, o que movimentou rumores e desagradou principalmente Dondon, a amante do coronel.

Os liames extraídos desse impasse no romance são sintomáticos nesta seguinte digressão histórica: ao longo da segunda década do século XX, intensificou-se o chamado jornalismo-utilitário, isto é, que elabora uma informação útil e é capaz de fazer com que o público tome uma atitude para enfrentar fatos do cotidiano ante a mensagem veiculada (VAZ, 2013, p. 59). Nesse período, “a imprensa estava consolidada, a de caráter artesanal subsistia no interior, nas pequenas cidades, nas folhas semanais feitas em tipografias, pelos velhos processos e servindo às lutas locais” (SODRÉ, 1999, p. 275). No entanto, acompanhando a modernização e o desenvolvimento social do início do século, as estruturas jornalísticas cresceram, tornando-se grandes imprensas e cada vez mais engajadas no diálogo entre o público e o fato político.

Em via correlata, o romance condeano explora uma imprensa local do interior que passa a problematizar os moldes políticos vigentes na região caruaruense. Esse enfrentamento tem a insatisfação de Dondon: “Não vou engolir aquele artigo assim sem mais nem menos. O cachorro do Chico Lima precisa de corretivo” (CONDÉ, 1968, p. 80); que, mesmo consciente da influência do jornal, ela manda seu recado: “a lata cheia de excrementos que atiraram à parede e na calçada da redação de O Combate” (CONDÉ, 1968, p. 82). Porém, o que se observa é a manutenção de uma insatisfação externada no veículo de comunicação e que vai tomando rumos populares, intensificada após a morte do coronel Ribas, assassinado por José Bispo, que se vinga: “- Nunca mais vosmecê vai mandar dar surra em homem, coronel. E descarrega toda a carga do revólver no peito do velho” (CONDÉ, 1968, p. 100).

Após o ocorrido, José Bispo foge e a morte do coronel é um passo para novos horizontes sociopolíticos na diegética cidade de Caruaru, como observado na fala da personagem Antônio Teixeira, filho de Teotônio e neto de João Teixeira: “tenho para mim que o gesto de José Bispo é mais significativo do que pode parecer: foi a primeira reação contra esse regime de coronelado do interior... [...] É tempo de acabar com isso” (CONDÉ, 1986, p. 111). Posteriormente, com a perda de influência política de Dondon, Ariosto Ribas ordena a saída da ex-amante do coronel - seu pai - da cidade; e também passa a caçar José Bispo, cujo filho é preso por suspeita de se encontrar com o fugitivo.  A partir disso, os rumos narrativos levam à insatisfação de muitos populares perante aquele regime coronelista, tendo o jornal O Combate como o principal veículo sociocomunicativo de influência e contrário às arbitrariedades.

Percebe-se que José Bispo é a figura central na dinâmica social dentro do enredo e nos passos de mudança que ocorrem na cidade. Inclusive, o breve capítulo intitulado “O homem e o seu cavalo” centra-se em situar o leitor sobre onde ele se encontra. Análogo aos típicos cangaceiros que, historicamente, andavam em bandos armados pelo Nordeste no começo do século XX, a personagem Bispo também se torna um, vagando de um local para outro em grupo pelo sertão pernambucano, só que já com uma informação que lhe inquieta: o suposto suicídio de seu filho, Jorge, na cadeia, capturado por Ariosto Ribas, e a solidão da esposa, Noca.   

Observa-se que o autor José Condé reafirma mais ainda sua vinculação a um cenário literário característico da primeira metade do século XX: a apreciação ao romance regionalista, tão presente em escritores contemporâneos a ele, como José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Ademais, com um tema que atravessa, em diferentes moldes, as obras dos autores desse lume ficcional: o cangaço, com a originalidade condeana em remeter a problemas da região do Agreste ao Sertão pernambucano. A extensão histórica desse assunto também alude a Antônio Silvino e Lampião, figuras simbólicas para pensar naqueles que ora já foram tratados como bandidos, ora como heróis nas roupagens sociopolíticas do pretérito Nordeste. E entre as causas que motivaram a vida no cangaço, estão: o poder absoluto dos coronéis, o sadismo das forças policiais, a injustiça social e a cumplicidade do homem do campo com sua proteção (SOUTO MAIOR, 2001, p. 26).

A complexidade vertida pela figura do cangaceiro ressoa na personagem José Bispo, com símiles motivações de fuga, resistência e sobrevivência. Na conjuntura narrativa, Caruaru tumultua-se ante a morte de Jorge: “Agora a cidade inteira se levantou contra Ariosto” (CONDÉ, 1968, p. 215). Os acontecimentos violentos e políticos levam à intervenção do governo do estado na cidade e ao afastamento de Ariosto Ribas ao Recife. Ao regressar, é surpreendido pelo então cangaceiro José Bispo:

 

Baixo, gordo, José Bispo aponta a carabina para Ariosto Ribas:

- Não adianta se mexer, seu Ariosto. Meus cabras já cercaram a fazenda. Não houve reação. Ninguém pode vir socorrer vosmecê.

Sorri:

- Vamos ter uma conversinha nós dois.

O velho José Inácio vem atrás, diz:

- Tudo pronto, seu Zé Bispo.

- Agora vá buscar o cavalo.

Voz trêmula, Ariosto indaga:

- Que pretende de mim?

José Bispo mostra os dentes num sorriso:

- Vim buscar vosmecê para uma voltinha de cavalo.

[...]

Tiram a roupa de Ariosto, amarram-no ao animal exatamente conforme a ordem de José Bispo: barriga e rosto voltados para o céu límpido, onde o sol bilha sobre a caatinga; os braços e pernas no sentido do chão, pendentes da barriga e da anca do animal como trastes inúteis.

Novamente José Bispo:

- Agora cada qual monte seu animal. Vam’bora, que temos muito que caminhar.

Com raiva, cospe no chão. Aproxima-se da cara de Ariosto:

- Agora, vosmecê vai ficar aí em riba dias e dias, andando por este mundo a fora, sem comer nem beber. Até secar de todo (CONDÉ, 1968, p. 263-265).

 

O que estaria fazendo José Bispo, ante a decadência política de Ariosto, senão reafirmando o caráter misto de justiceiro e vingador próprio da figura do cangaceiro? Ser amarrado em um cavalo e arrastado são práticas comuns nesses episódios de representação da violência deste que faz sua própria lei no caminhar pelo sertão nordestino. Ao mesmo tempo que pode remeter à violência, também alude ao heroísmo e à valentia de Bispo, que no começo da narrativa recebeu as humilhações impostas pelo coronelismo caruaruense e finda o enredo com a coragem de enfrentar e se vingar, como típico homem do cangaço, daquele que lhe projetou rivalidade. Finalmente, Caruaru retoma seu cotidiano de cidade do interior que, amalgamada por tensões sociais e políticas, porém, sem a figura de Ariosto, parece continuar visando os ares de progresso das grandes urbes do começo do século XX. 

Com esteio a confirmar o que até o fim se lança: o romance de José Condé tem sua estética iluminada por condicionantes históricos, possíveis de serem identificados tal qual o pensamento de Walter Benjamin (que muito utilizou da escrita literária para suas formulações filosóficas), escovando a história a contrapelo, olhando com distanciamento para as ruínas da cultura e da narrativa de grupos cuja existência fora marcada por meio da exploração e da violência (BENJAMIN, 1987, p. 222-232). Decerto, a Caruaru representada no texto condeano não é a da atualidade, sendo, essencialmente, ficcional, porém, viabiliza que o leitor seja projetado para um tempo que não consegue ser esquecido, recuperando os rastros da memória e dando significação a um continuum da história por meio da literatura.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta composição abrigou-se este artigo: a exploração do romance Terra de Caruaru, de José Condé, à luz dos vínculos mantidos entre a memória e a história. Nos trilhos mnemônicos, foi possível perceber alguns aspectos narrativos que dialogaram com traços biográficos do autor caruaruense. Além da articulação entre memória e texto literário, designou-se a ida ao contexto histórico, que resgatou um tempo pretérito da gênese e do cotidiano da cidade de Caruaru, com sua política e sua cultura característica do interior pernambucano. A obra condeana tem muitas pegadas que homem deixa de si mesmo, com sua capacidade de criação artística que se confunde com a vida e, em grande medida, explora a compreensão que se tem do mundo e dos indivíduos de ontem e de hoje: ora como eles foram, ora como são ou poderiam ter sido.

As perspectivas que ressoam desta conclusão remetem ao futuro: a necessidade de outras imersões críticas e teóricas no romance de José Condé, visto que se trata de uma narrativa que, ao longo do tempo, recebeu pouco foco acadêmico nos estudos literários, além de toda sua produção ficcional. Com os fios do porvir, também parece importante perspectivas que iluminem a seguinte pergunta: circunscrita no meio literário do início da segunda metade do século XX, quais elos põem a obra em sintonia com outras da sua época ou de outros tempos? Escusando-se de oferecer uma resposta, este artigo, sendo devedor de outras proposições analíticas, embora comprometido com o que objetivou, semeia novos interesses pela literatura condeana e destaca a relação entre a experiência de mundo do autor e o contexto que o incentivou a exaltar o meio social descrito.

 

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Title

Literature on the tracks of memory and history: Terra de Caruaru, by José Condé.

 

Abstract

This article aims to analyze the novel Terra de Caruaru (first published in 1960), by the Pernambuco writer José Condé, in the light of the links maintained between memory and history. The theoretical references stamped in the analysis, from Sandra Jatahy Pesavento, Antonio Candido, Carlo Ginzburg, Jeanne Marie Gagnebin, Aleida Assmann, among others, proposed to reflect on the existing marks within the literary text that make it possible to refer to exteriority, having as guiding axes of investigation the mnemonic and historical biases. The Condeana narrative, set in the city of Caruaru, located in the Agreste region of Pernambuco, points to the author's biographical aspects, modeling the work dialectically by reminiscences of his childhood, which appear strongly in the narrative. In addition, in the symbiosis between the literary and the historical, the text builds the horizon of the municipal genesis and its sociopolitical daily life in the 20s of the 20th century, amalgamated by coronelismo, by the cangaço, by the human profiles, by the culture and landscaping of the northeastern interior. and the yearning for progress. With a regional trait that gives it aesthetic originality, the novel structures spaces and diegetic beings that find modes of meaning in the extratextual resources that externalize them, crossing the tracks of memory and history.

 

Keywords

Literature; Story; Memory; José Condé.

 

 

Recebido em: 02/05/2022.

Aceito em: 16/07/2022.